À Conversa com Altamiro da Costa Pereira (Parte 1)
Apaixonado pela Arte, poderia ter sido arquiteto, mas uma moeda ditou que o seu destino fosse a Medicina, acabando a sua Licenciatura na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em 1983. Não se considera um médico ortodoxo e, apesar de ter sido interno de Pediatria, optou pelo caminho menos usual: docente de Biomatemática. Estudou em Universidades de diversos países como a de Johns Hopkins nos Estados Unidos, McGill no Canadá, Aarhus na Dinamarca, Nijmegen na Holanda, Lausanne na Suíça e Dundee na Escócia. Começou a ensinar Higiene e Epidemiologia, na FMUP, em 1985, e integrou, como investigador, o IPATIMUP, entre 1993 e 1996. Sempre insatisfeito, criou o CINTESIS, em 2003-04. Participou em numerosos projetos de investigação, nacionais e internacionais, nos campos da Epidemiologia, Informática Médica e investigação clínica, tendo publicado mais de 300 artigos científicos, dos quais mais de 200 indexados na ISI.

Em 2018, abraçou um novo desafio: ser o diretor da FMUP.

1ª Parte – Escolhas de Vida e Investigação

Sempre sonhou ser médico?

Eu sempre tive muitas dúvidas quanto à profissão a seguir. Eu não sou um médico praticante, nem um médico ortodoxo, nem sequer uma pessoa ortodoxa. Em miúdo, a primeira profissão que desejei ter, tinha talvez uns sete ou oito anos, foi a de arqueólogo. Depois, percebi que o meu pai, não sendo um lorde britânico, não teria capacidades financeiras para sustentar essa minha ideia de me tornar um arqueólogo e, por isso, acabei por desistir dela por não imaginar um mecenas capaz de financiar os meus sonhos. Depois, pensei em muitas outras profissões que pudesse eventualmente vir a ter, porque a minha principal ideia era, essencialmente, ter uma vida útil, mas feliz e com liberdade. Também nunca tive uma vocação clara desde miúdo, não apenas em relação à Medicina, mas a qualquer outra profissão. Realizei até testes psicotécnicos, por volta dos 17 anos e acalentado pelos meus pais que me viam tão inseguro, e a primeira recomendação que deram foi seguir jornalismo! Seguido de todo o tipo de outras profissões bastantes díspares, incluindo a de médico, arquiteto, engenheiro ou advogado. O meu problema é que tinha e tenho curiosidade e interesses intelectuais que abrangem praticamente todas as áreas do saber. De qualquer modo, quando tive mesmo que decidir, à entrada da universidade, estava indeciso apenas entre duas áreas: a da Medicina e a da Arquitetura. Para decidir, atirei uma moeda ao ar e, dando caras, inscrevi-me em Medicina. Mas nunca me arrependi deste resultado fruto do acaso, pois com a Medicina poderia não só vir a ser útil (como pretendia desde miúdo) como poderia ainda escolher muitas especialidades e saídas profissionais diferentes, incluindo até a hipótese de não vir a exercer Medicina… Ou seja, a Medicina, sendo um curso ao mesmo tempo científico e humanista, é um curso que nos leva a conhecer bem o ser humano – seja o funcionamento interno dos seus órgãos seja o seu comportamento mais externo, em sociedade – e isso, por si só, dá um conhecimento teórico e prático grande sobre a Humanidade que poderá ser usado em múltiplos contextos profissionais.

O que mudou no ensino de Medicina desde a altura em que estudou até agora?

Em bom rigor, tenho muitas dificuldades em responder a esta questão. Eu costumo dizer que as únicas pessoas que conhecem verdadeiramente bem o curso de Medicina são os próprios estudantes de Medicina! Embora agora haja também pelo menos uma outra pessoa que o conhece bem: a professora Dulce Madeira, a atual diretora do Curso. Mas durante muitos anos não terá havido muitos outros professores que o conhecessem tão bem.

Na verdade, depois de fazerem o vosso curso, vocês sabem tudo sobre ele porque o experienciaram, conheceram certamente a maioria dos seus principais professores, conheceram todas as unidades curriculares do seu plano de estudos e por isso conhecem o curso melhor que ninguém. Ora, já com a maioria dos vossos professores não é tanto assim. Tipicamente, conhecem bem apenas a sua própria disciplina ou unidade curricular. Portanto, eu poderia dizer-lhes, com todo o rigor, o que foi mudando na disciplina em que fui regente durante quase 25 anos, e que antes de 1994/95 até nem existia, a Introdução à Medicina que agora está transformada em duas semestrais: a Bioestatística, Informação e Decisão em Saúde (BIDS I) e a Introdução à Investigação em Saúde (IIS).

Contudo, relativamente ao curso como um todo, eu não conheço suficientemente a forma como ele foi mudando ao longo destes últimos 40 anos. Pode parecer absurdo dizê-lo, mas acho que a grande maioria dos colegas docentes da minha geração – a não ser talvez aqueles que tenham tido filhos a frequentarem o curso de Medicina da nossa Faculdade – pouco mais conhecerão do que a unidade curricular em que dão aulas, e talvez algumas outras poucas disciplinas como as da responsabilidade do seu próprio departamento. Mas, infelizmente, não têm uma visão global e/ou integrada do Curso. Obviamente, quem, neste momento, tem essa visão global é a diretora do MMED, certamente seguida pela sua equipa, pelo conselho pedagógico e ainda por algumas pessoas – por exemplo os elementos que participaram na antiga comissão da reforma curricular – que vão refletindo, do ponto de vista pedagógico, sobre o curso. E, mesmo assim, confesso que ainda hoje me restam algumas dúvidas sobre esse seu conhecimento global, porque se tivessem refletido mais profunda e adequadamente, teria havido certamente mais contenção nalgumas mudanças propostas e, muito provavelmente, a Reforma Curricular concebida e implementada teria tido um maior sucesso, não necessitando agora de ser revista, na sequência de toda uma série de audições e avaliações recentemente realizadas junto dos estudantes e docentes da FMUP.

 “Os nossos atuais estudantes estão a ser hoje mais bem preparados, e sensibilizados, para se tornarem lifelong learners, ficando assim mais autónomos e mais críticos ao mundo  que os rodeia.”

De qualquer modo, atrever-me-ia a dizer que os nossos atuais estudantes estão a ser hoje mais bem preparados, e sensibilizados, para se tornarem lifelong learners, ficando assim mais autónomos e mais críticos ao mundo que os rodeia. Ou seja, acho que os nossos atuais estudantes estarão a ser, em média, mais bem preparados que os da minha geração para melhor responderem, técnica e intelectualmente, aos desafios que irão enfrentar.

Por outro lado, acho que lhes poderá estar a faltar um maior contacto humano com os seus docentes, sobretudo com os mais velhos, que lhes poderiam vir a transmitir algo que não é fácil apreenderem em manuais, livros ou mesmo nas plataformas digitais da internet: o exemplo de curiosidade e humildade e perante o desconhecido e de empatia perante os doentes que só os melhores e mais experientes professores lhes conseguirão transmitir, sobretudo através do seu exemplo diferenciado, pessoal e profissionalmente. De facto, não raras vezes eu tive esse privilégio, no meu tempo de estudante, e guardo, ainda hoje, muitos ensinamentos e recordações de alguns dos meus melhores mestres que me têm sido cruciais para o que me fui tornando, ao longo da minha vida.

Qual foi a motivação para criar o Cintesis e qual o principal trabalho a ser desenvolvido?

A principal razão que me levou a criar o CINTESIS (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde) foi o facto de não me sentir bem integrado em nenhuma outra unidade de investigação já existente. Por isso, tinha de criar o meu próprio “clube de investigação”. As unidades de I&D já existentes ou já não me aceitavam ou não se interessavam por cobrir as áreas científicas que eu estava a procurar desenvolver.

Inicialmente, logo que regressei do meu doutoramento no Reino Unido, fui convidado a integrar o IPATIMUP e, durante alguns anos, acompanhei até, de perto e com entusiasmo, a fundação e o início das atividades deste instituto, agora integrado no I3S. Na verdade, a primeira unidade de investigação onde trabalhei como investigador, na área da Epidemiologia do Cancro, foi no IPATIMUP até ele passar a ter instalações próprias e fora da cerca da Faculdade de Medicina / Hospital de S. João. Contudo, ao me ter sido oferecido um gabinete, conjuntamente com um espaço de laboratório, pelo Professor Sobrinho Simões, no então recém-construído edifício do IPATIMUP, acabei por não poder aceitar.

De facto, foi por essa altura que acabei também por sair do IPATIMUP. Fundamentalmente, porque achei que o meu lugar (entendido como o sítio onde me deveria “sentar” ou “estar”) devia ser antes na Faculdade de Medicina!

E não era apenas por a FMUP ser a entidade que me pagava, mensalmente, o meu salário. Mas também porque era preciso, e urgentemente, implementar toda uma série de infraestruturas que, nessa ocasião, não existiam na FMUP. E, sobretudo por uma questão de lealdade institucional, eu teria de o tentar fazer e, para isso, não poderia deixar de lá “viver”!

Embora, deva também confessar que, por essa altura, as perspetivas parecessem bem mais promissoras no IPATIMUP do que na Faculdade, até porque os financiamentos oriundos da União Europeia para o desenvolvimento de infraestruturas de investigação eram canalizados pelo governo (e ainda hoje a maioria das vezes o continuam a ser) para os institutos ou laboratórios associados, em detrimento das Faculdades e/ou da Academia!

Para além disso, o IPATIMUP era uma unidade muito prestigiada nas áreas da Patologia e da Biologia Molecular do cancro que não são, de todo, áreas em que o CINTESIS tenha vindo a tentar desenvolver. Na verdade, quando ajudei a criar o CINTESIS – acompanhado de meia dúzia de outros colegas e colaboradores da FMUP – não havia nenhuma outra unidade no País que integrasse, no mesmo conceito, pessoas ligadas à Investigação Clínica, Estatística e Informática Médica e isso era também o que sempre tinha tentado cultivar no meu próprio departamento. Acresce que, eu e os meus colaboradores não nos podíamos candidatar a projetos de investigação, financiados pela FCT, se não pertencêssemos a alguma unidade de I&D. Por isso, tive de tentar criar o CINTESIS, inicialmente como um meio de alavancagem da investigação do departamento que então dirigia na Faculdade (isto é, o Serviço de Bioestatística e Informática Médica).

“Não havia nenhuma outra unidade no País que integrasse, no mesmo conceito, pessoas ligadas à Investigação Clínica, Estatística e Informática Médica.”

Mas, desde aí, o CINTESIS não só sofreu diversas vicissitudes como também obteve bastantes sucessos, estendendo-se hoje muito para além do departamento, da Faculdade e até da própria Universidade do Porto. De facto, foi desenvolvendo protocolos e sinergias com muitas outras entidades, públicas e privadas, desde empresas a entidades prestadoras de cuidados de saúde, mas sempre mantendo forte o seu elo original à sua casa mãe, a Faculdade de Medicina do Porto.

Quanto às vicissitudes, por exemplo, nas primeiras avaliações não fomos muito bem recebidos, sobretudo por avaliadores portugueses. De facto, fiquei algumas vezes com a sensação de que queriam até extinguir o CINTESIS, mas os avaliadores estrangeiros deram-nos, no geral, sempre boas avaliações e isso acabou por não vir a acontecer!

Quanto aos sucessos, com o passar do tempo, a Unidade foi crescendo, passando de menos de uma dúzia de investigadores para atualmente ter mais de 200 investigadores doutorados integrados ou mais de 500, se nos investigadores incluirmos também estudantes de mestrado ou de doutoramento, ou seja, colaboradores ainda não doutorados.

De facto, o CINTESIS tornou-se também uma unidade bem-sucedida cientificamente, tendo produzido, nos últimos 3 anos, mais de 900 artigos científicos indexados dos quais quase 70% em revistas do 1º ou 2º quartis. A Unidade é ainda sustentável do ponto de vista financeiro, tendo um orçamento anual médio, apenas para atividades de investigação, que ultrapassa já os 2 milhões de Euros (excluindo os salários dos seus investigadores que na sua larga maioria continuam a estar integrados na academia ou em unidades de saúde e prestam deste modo igualmente atividades de ensino e assistenciais). Mas se incluirmos a parte dos seus salários potencialmente dedicada a atividades de investigação, à data, o CINTESIS apresenta um turnover anual total de cerca de 6 milhões de Euros. Acresce que o custo médio de obtenção de uma citação científica nas suas publicações indexadas (como indicador do seu impacto na comunidade científica global), face ao total do investimento realizado pelos contribuintes portugueses e/ou estrangeiros, é substancialmente menor que o de outras unidades congéneres. Para além de outros evidentes impactos sociais e mediáticos. Tudo isto considerado, torna o CINTESIS numa das unidades de I&D mais eficientes do País apesar, ou talvez por isso mesmo, do seu modelo organizativo pouco ortodoxo!   

“Outra característica única que o CINTESIS tem é uma presença muito forte e simultânea de investigadores oriundos das áreas da Enfermagem, Psicologia, Matemática, Ciências de Computadores, Medicina Geral e Familiar, em paralelo com muitos outros tipos de cientistas e de profissionais de saúde.”

Tipicamente, disciplinas e/ou investigadores onde, na área da Saúde, a investigação tem estado menos desenvolvida e/ou menos apoiada, financeiramente, pelas entidades financiadoras tradicionais.

Na verdade, o CINTESIS tem tanto investigadores seniores e excelentes como outros que são bastante jovens ou estão ainda em fase de aprendizagem / formação. Aliás, como coordenador, fui, em quase todas as avaliações, pressionado até por vários avaliadores a conservar na Unidade apenas a nata dos investigadores do CINTESIS e a tentar, de forma ativa e estratégica, “ver-me livre” dos outros, ou seja, daqueles menos produtivos cientificamente.

Mas eu sempre resisti a essas recomendações pois achei (e acho) que manter uma heterogeneidade na qualidade dos investigadores – mesmo sendo isso um caminho mais longo e difícil – acabará também por ser um caminho mais seguro e mesmo mais eficiente. Na verdade, embora mais longo e difícil, esse caminho acabará por levar as boas práticas de investigação bem como a motivação e o desejo de investigar a um maior número de profissionais de saúde, e isso só poderão ser boas notícias para o país, mesmo se apenas a longo prazo. Mas que seriam dos “descobrimentos” portugueses se eles não tivessem sido planeados desde D. Dinis a D. João II? Mas consegue-se algo de duradouro, em pouco tempo? Pessoalmente, acredito pouco em acelerações inconsistentes…

Acresce que, esta estratégia de diversidade e heterogeneidade de investigadores, promove também muito mais a multidisciplinaridade em futuros projetos de investigação, uma melhor investigação de translação a médio-longo prazo e, sobretudo, uma melhor articulação entre investigadores mais fundamentais e os profissionais de unidades de prestação de cuidados de saúde.

Ora este tipo de estratégia conceptual não existe na maioria das unidades de I&D mais tradicionais, que só desejam ter investigadores que consigam publicar na Nature ou na Science. Mas, se este é um desiderato muito nobre e saudavelmente ambicioso, convirá também não se esquecer que, por vezes, são aqueles aparentemente menos versados em questões de investigação, mas que estão no terreno, que poderão vir a fazer a diferença, realizando a verdadeira translação da investigação mais básica em contextos clínicos. Portanto, acredito que dentro de 10 anos (ou talvez menos), o conceito ainda hoje inovador do CINTESIS poderá vir a fazer a diferença, envolvendo cientistas, médicos e os outros profissionais de saúde, promovendo deste modo uma verdadeira e mais eficiente investigação interdisciplinar e translacional.

Entrevista realizada por Beatriz Sá, Rafaela Sá e Sara Monte.

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Vê aqui a Parte 2 e a Parte 3!