À Conversa com Altamiro da Costa Pereira (Parte 3)

3ª Parte – FMUP – Comunidade Estudantil

Em relação aos estudantes o que é que pretende fazer ou mudar com a sua passagem pela direção?

Muitíssimas coisas. Haja saúde, tempo e algum dinheiro disponível!

Em primeiro lugar, quero dar o meu maior apoio político e institucional ao processo de avaliação e revisão da reforma curricular do MMED e à melhoria e atualização dos processos pedagógicos da Faculdade, designadamente através do projeto “FMUP Online”, que visa a digitalização e ensino à distância de uma parte significativa do ensino da Faculdade, para além de um reforço da sua área de simulação. De facto, esta modernização foi tornada ainda mais premente, considerando os efeitos no ensino (nomeadamente o clínico) da atual pandemia, continuando sem sabermos quando estará finalmente controlada. Ou seja, o meu maior empenho será na melhoria das condições pedagógicas e da qualidade do ensino da FMUP e, nesse sentido, foram já adquiridas plataformas como a AMBOSS, estando outras, neste momento, em fase de negociação para futura aquisição.

Mas também não deixarei de tirar os horrendos cacifos da entrada do 01! Ou seja, de começar a remodelação do 01 pela recuperação daquele espaço para o tornar num espaço útil e aprazível pois é um das duas entradas mais nobres da Faculdade. Complementarmente, queria também requalificar o jardim, sobretudo reenquadrar os lindíssimos e valiosos painéis de azulejos do Júlio Resende. Depois, ter-se-á de reorganizar todo aquele “mercado de Babel”, que mais parece uma Medina árabe, em Fez ou Marraquexe, sem qualquer desprimor para Marrocos que agora até estarão bem melhores que o nosso 01. Ou seja, tornar todos os espaços comerciais em algo mais “clean” e mais organizado, de modo que essa entrada possa recuperar a sua nobreza inicial, mas mantendo as suas funcionalidades mais atuais.

Também gostaria de fazer obras na própria direção da AEFMUP, pois aquilo também já começa a ficar um bocadinho, no mínimo, “démodé” e, no máximo, bastante caótico. Se possível, queria acrescentar alguns espaços contíguos do Hospital, de modo a poder aumentar um pouco os espaços disponíveis da AE.

Queria ainda remodelar toda a parte do piso 02, debaixo das atuais instalações da AEFMUP, o que vocês chamam o SBIM, porque queria que aquilo fosse um espaço totalmente requalificado para atividades lúdicas e culturais da AE. Enfim, de momento até me desgosta lá entrar, mas, se possível em articulação com o Hospital, gostaria até de abrir esse espaço para o pátio exterior, queria tornar tudo mais aberto e arejado, colocando lá muitas das atuais atividades da associação, incluindo um espaço para refeições pessoais / trazidas de casa. E, depois, quero ainda recuperar, para além dos anfiteatros e de todas as restantes partes pedagógicas, o antigamente lindíssimo Salão de Alunos, devolvendo-lhe a sua função inicial, como sala de convívio e de espetáculos.

Isso é o mínimo do que eu gostaria de fazer ainda durante este meu mandato, mas o Covid 19 veio possivelmente interferir com alguns destes planos, nomeadamente por causa da eventual crise financeira que poderá vir a provocar dificuldades também nas receitas próprias da FMUP.

Já agora, gostava ainda de intervir junto do novo edifício do CIM, onde está o REST CIM, nesse espaço arrelvado entre o edifício a poente dos 7 pisos e o central do bar, de maneira a torná-lo num espaço passível de ser usado em convívios, festas ou até em cocktails ao pôr do sol…!

Até porque acho sinceramente que é uma zona muito agradável e que deveria ser expandida. Não será expandir o “deck”, mas antes expandir o uso desse espaço até ao outro edifício. Dotá-lo de luzes, de mesas, enfim, obter um reaproveitamento daquele espaço que tem um ótimo enquadramento natural. E, já agora, gostaria que a relva se mantivesse sempre verdejante… através da instalação de um sistema automático de rega!

 

Falando agora um pouco sobre a situação atual relativa à COVID-19, acha que o mundo terá epidemias e pandemias como a atual mais frequentemente no futuro? Como deve o SNS, e o ensino da Medicina, preparar-se para esse futuro?

Infelizmente, o Mundo sempre teve este tipo de acontecimentos, a nossa memória é que é sempre um pouco curta, abrangendo sobretudo um espaço de uma ou de poucas gerações. Contudo, desde as pestes da Antiguidade e Idade Média, a bubónica ou a varíola, até aos verdadeiros genocídios que foram feitos quando os europeus chegaram às Américas, levando a tuberculose ou importando a sífilis, ou, mais recentemente, a famosa pandemia de gripe pneumónica de 1918, e as epidemias sazonais como as da Influenza, as epidemias e pandemias são algo que, de facto, tem acompanhado desde sempre a humanidade e só com as recentes melhorias sanitárias e o advento das vacinas e dos antibióticos começámos a julgar que as podíamos vir a controlar. Digamos que acontecem quando tipicamente uma população não imunizada contacta com agentes microbianos oriundos de outras populações afetadas ou até, em determinados casos, quando se dá a passagem de vírus ou outros microrganismos de animais para humanos.

Como saberão aliás, a possibilidade deste tipo de pandemia estava até já prevista há cerca de uma década. Tal como outros fenómenos naturais, como os tsunamis, terramotos, erupções vulcânicas, furacões ou mesmo a queda de meteoritos, nós não sabemos, de facto, quando vão acontecer, mas apenas que têm uma certa probabilidade de virem a acontecer, e até mais em certos locais do que noutros. Como um outro terramoto em Lisboa, por exemplo, mais tarde ou mais cedo irá acabar por acontecer, pois já aconteceu uma vez e pelos vistos terá uma dada frequência que rondará algumas centenas de anos. Ou seja, os fenómenos da natureza são, até por definição, naturais. Pensemos até nas alterações climáticas. Não sendo um negacionista, alterações climáticas sempre existiram desde o início do mundo, nos últimos milhões ou mesmo nos últimos milhares de anos, antes até do Homem poder ter tido qualquer papel relevante na sua ocorrência.

Portanto, tudo isto são fenómenos naturais, onde se incluem as próprias pandemias que dependem de toda uma série de fatores ecológicos. Um problema novo é que com os avanços tecnológicos a humanidade poderá também começar a produzir ou a induzir (de forma intencional ou não) os seus próprios fenómenos “naturais”… É claro que podem não ser muito naturais aqueles mercados na China e não só, na Tailândia e outros países sobretudo asiáticos, aqueles mercados em que se juntam animais selvagens de várias espécies, enfim, o que chamam de “wet markets”, e que, realmente, podem ser mais propícios, obviamente, à propagação de vírus e à propagação de doenças, tal como é uma das hipóteses possíveis para a origem da pandemia do Covid 19…

Enfim, a verdade, tal como a ciência, é algo muito difícil de investigar e de elucidar. Mas temos de o tentar fazer!

Neste contexto, gostaria de aqui fazer uma singela homenagem ao saudoso Professor Joaquim Maia com quem eu comecei a ensinar e a trabalhar, em 1985, no Serviço de Higiene e Medicina Social que ele então dirigia na FMUP. Muitas vezes me lembrei dele nestas últimas semanas, pois acho que ele seria talvez a única pessoa do nosso país que, se estivesse vivo e sabendo verdadeiramente de modelos matemáticos de propagação de epidemias, nos poderia ter dado um bom contributo para o nosso combate sanitário. Certamente que não saberão, mas o Professor Joaquim Maia – que foi também o mestre dos Doutores Henrique de Barros, da FMUP e Guilherme Gonçalves, do ICBAS, responsáveis pelo ensino da Saúde Pública na UP – foi um pioneiro do estudo dos modelos matemáticos de propagação de epidemias. Ele realizou trabalhos de investigação, nos anos 50/60, na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e fez uma publicação que, será uma das primeiras, a nível mundial, descrevendo fórmulas e modelos matemáticos sobre a propagação de epidemias. Mas, infelizmente, o Professor Joaquim Maia não parece ter deixado, pelo menos na minha opinião, continuadores neste nicho muito concreto e específico do saber. Pois nenhum destes três (ou alguns outros colaboradores que teve) se dedicou tão profundamente ao estudo das propagações de epidemias, embora qualquer um de nós tenha tentado continuar, e até com algum sucesso, o seu trabalho nas áreas da Epidemiologia, da Bioestatística ou da Saúde Pública.

Na verdade, a FMUP ou o país não conseguem criar, sobretudo de um momento para o outro, epidemiologistas teóricos ou grandes especialistas no controlo de pandemias, se não existirem já as necessárias condições nas suas academias e centros de investigação. Embora Portugal precisasse, neste momento, muito deles, porque, realmente, praticamente não os tem. Pese ter no terreno, excelentes médicos de Saúde Pública que têm dado o seu melhor na identificação e seguimento de casos infetados. Aliás, gostaria de saber quais serão os especialistas que o governo tem vindo a ouvir. Seria até interessante que vocês os pudessem também vir a entrevistar, indagando até os seus currículos técnicos e científicos e a sua experiência prática no combate a este tipo de epidemias.

Para além de algumas iniciais e breves aparições do Doutor Jorge Torgal e do Dr. Francisco George, a pessoa que tem mais dado a cara neste combate sanitário é a Dr.ª Graça Freitas, diretora da DGS, que, para além da sua enorme dedicação profissional e continuada simpatia e empenho pessoais, parece-me estar quer em termos académicos, científicos ou até políticos, um pouco distante do seu predecessor que esteve à frente do combate à epidemia de gripe pneumónica de 1918. Ele que foi também professor na escola que antecedeu a FMUP, a Escola Médico-Cirúrgica do Porto, e que depois, por vicissitudes várias, teve que abandonar a sua cidade natal, o Porto, tendo criado, já em Lisboa, o Instituto Nacional de Saúde Pública que agora tem o seu nome, de Ricardo Jorge. Para os que ainda não se aperceberam, temos uma bela estátua sua, em bronze e em tamanho natural, no jardim que a Faculdade partilha com o CHUSJ.

Ou seja, os grandes vultos vão inexoravelmente morrendo, mas, por vezes, não lhes sabemos dar descendência à sua altura e isso é preocupante, bastante sintomático e deveria merecer reflexão por parte das nossas elites dirigentes, sejam elas políticas ou académicas!

Mas voltando à vossa última pergunta, acho que teremos de adaptar o atual sistema e métodos de ensino e não tanto os seus conteúdos programáticos. É claro que se irão acrescentar mais umas linhas às vossas sebentas ou ao vosso estudo. A começar pela vossa sebenta de Microbiologia, onde se dizia que os coronavírus não tinham grande interesse patogénico para a humanidade! Na altura, em que foi escrita, isso era certamente verdade. Mas torna-se agora demasiadamente evidente que essas e outras afirmações terão necessariamente de ser alteradas… Mas não será apenas o estudo que irá mudar, incluindo, certamente, um reforço no ensino à distância e na simulação médica ou o reforço do uso de atores, simulando verdadeiros doentes.

“O que terá de mudar, talvez ainda mais profundamente, é a forma como os serviços de saúde irão ser reorganizados e isso poderá vir a ter um grande impacto no ensino.”

O que acho que terá de mudar, talvez ainda mais profundamente, é a forma como os serviços de saúde irão ser reorganizados e isso poderá vir a ter um grande impacto no ensino, por exemplo, na forma como, sobretudo o ensino da propedêutica e da prática clínica, poderão vir a ser realizados.

Pessoalmente, espero também, vir a apoiar a criação, na FMUP, de um grupo de ensino e investigação na área das Políticas de Saúde, pois acho que é fundamental preocuparmo-nos – muito mais do que no passado recente – com as Políticas de Saúde e com a forma como são tomadas decisões em saúde, incluindo a evidência científica que suporta todas essas decisões e as questões éticas de equidade nos acessos e desigualdades na prestação de cuidados de saúde!

Mas, sobre aquilo que vos estava a dizer logo no início da nossa conversa, sobre vocações ou escolhas profissionais, mas afinal o que é que eu acho que sou neste momento? E que se calhar o que fui durante toda a minha vida sem me ter apercebido que o estava muitas vezes a tentar ser, pelo menos ao nível institucional… se calhar serei agora sobretudo um gestor… ou um político!

Não um político partidário, nem um político ortodoxo, fazendo, por exemplo, política como deputado ou como um funcionário do Estado nomeado para qualquer cargo público. Na verdade, eu nunca fui nomeado por nenhum governo ou entidade governamental para fazer rigorosamente nada de natureza política. Todos os cargos de “política” académica que até agora tive foram sempre por eleição. Mas, se calhar, o que eu sinto é a necessidade de me tornar político, cada vez mais. Político, no sentido de poder intervir civicamente e de poder ajudar social e academicamente a comunidade em que estou inserido. E foi com a idade e, sobretudo, com as diferentes experiências profissionais e de vida que fui tendo, muitas delas razoavelmente difíceis, que veio a desenvolver-se este meu gosto e agora até desiderato, algo tardio.

“Do ponto de vista profissional, sinto que me tenho vindo a tornar, talvez por necessidade, sobretudo um gestor de ciência ou de ensino, ou, se preferirem um político universitário.”

 

Claro, que eu também tenho toda uma outra área de que também gosto muito, à qual me dedico sempre que tenho um pouco de tempo livre, desde há já muitos anos, que é a área da Arte e da História. Mas isso é toda uma outra história e que por si só mereceria talvez uma outra entrevista. Quem sabe? Talvez num outro dia. Mas, do ponto de vista profissional, sinto que me tenho vindo a tornar, talvez por necessidade, sobretudo um gestor de ciência ou de ensino, ou, se preferirem um político universitário, num bom sentido, espero eu!

 

Estando a terminar esta entrevista e tendo há pouco mencionado o seu antigo mestre Joaquim Maia, quais foram os outros professores da FMUP que mais o influenciaram ou contribuíram para a sua vida académica?

É uma pergunta difícil pois eu estou grato a muitos mais do que aqueles que aqui poderei recordar e que, desde 1977, se foram cruzando comigo em aulas ou conversas que com eles tive, em bons e maus momentos da minha vida académica. Terei, pois, que fazer uma escolha criteriosa e justa. Assim, evocarei apenas aqueles que já faleceram e que contribuíram, decisivamente, para o que sou hoje como professor, investigador e gestor universitário.

E fá-lo-ei seguindo uma ordem cronológica: a de quem conheci primeiro. E terei de começar pelo Professor Daniel Serrão que conheci ainda antes de entrar para a Faculdade. Até porque fui colega e amigo de dois dos seus filhos. Dele direi que era um homem de fé, um orador extraordinário, com uma inteligência arguta e brilhante. E um amigo. Que, muitos anos mais tarde, percebi que me ajudou, no antigo Instituto Nacional de Investigação (INIC), a conseguir obter a bolsa que me levou a permitir fazer o meu doutoramento no Reino Unido, pois as possibilidades de o fazer em Portugal, em 1989, sobretudo na área científica que pretendia, eram muito escassas. Ou seja, o Professor Daniel Serrão foi crucial para o início da minha carreira académica, como doutorado, aconselhando-me mais tarde com ele incontáveis vezes, sobretudo quando se me deparava um problema de difícil resolução.

Embora já tenha falado mais acima nele, não poderei também deixar de o fazer aqui. Refiro-me ao Professor Joaquim da Costa Maia, que conheci primeiro como estudante, em 1981, e depois, já como seu assistente estagiário, em 1985. Dele guardo a memória de um homem extremamente culto, melómano, de saber enciclopédico, com uma memória prodigiosa, uma gentileza cortês e uma educação esmeradíssima. Embora tenha ajudado inúmeros docentes mais novos a doutorarem-se, fazendo-lhes, manualmente, a necessária estatística dos seus dados – o que naquele tempo era para muitos um autêntico quebra-cabeças, até porque os computadores eram uma raridade e usavam ainda cartões perfurados –, era relativamente mal-amado pelos seus pares catedráticos por velhas histórias dos conturbados tempos do PREC. Mas era um homem bom, muitíssimo bom conversador, e eu perdia-me durante horas a fio a ouvir as suas histórias plenas de sabedoria e ensinamentos. Enfim, um intelectual como hoje são já raros na Universidade. Ou seja, o Professor Joaquim Maia continua ainda hoje a ser o exemplo de universitário que, se tivesse os seus talentos, gostaria de emular.    

Depois, gostaria de recordar, agradecendo tudo o que com ele aprendi, o Professor Norberto Teixeira dos Santos. Não era de trato fácil, tinha-se formado em Lisboa e vinha retornado de Lourenço Marques. Por tudo isto nunca teve uma vida facilitada na FMUP. Mas era de uma enorme perseverança e coragem, para além de possuir uma visão estratégica e uma capacidade de inovação e de definição de objetivos alcançáveis, notável. Nunca se dava por vencido e lembro-me bem de uma das suas frases mais icónicas e, aparentemente, paradoxais: “O difícil mesmo é termos um bom plano. Depois é fácil. É só executá-lo”. Conheci-o como aluno de Pediatria, em 1982, e desde aí até à sua morte prematura, em 1999; nunca mais deixámos de ser amigos, tendo inúmeras vezes discutido com ele assuntos de política universitária, por vezes durante horas, talvez até porque poucos tinham entusiasmo e gosto suficiente para o fazer!  Ou seja, o Professor Norberto Teixeira dos Santos ensinou-me muitos dos conceitos e comportamentos que ainda hoje tento aplicar no meu dia-a-dia, sobretudo na área da gestão universitária e na defesa intransigente das nossas convicções

Finalmente, o Professor Pinto Machado. Quando o conheci, por volta de 1996, eu estava já doutorado e dirigia então o Serviço de Bioestatística e Informática Médica e ele era o diretor da FMUP. A seu pedido, colaborei em muitas das suas iniciativas, designadamente na definição do que viria a ser um plano de desenvolvimento da Faculdade – que muitos anos mais tarde veio a culminar na construção do CIM – e na organização do 1º Dia da Faculdade, evento pioneiro na Universidade que pouco tempo depois acabou por ser reproduzido em numerosas outras unidades orgânicas da UP e fora dela. Desse convívio, recordo a sua profunda cultura humanista, a sua generosidade, o seu gosto pela inovação tecnológica (e.g. foi no seu tempo que se iniciou a rede informática da Faculdade e o serviço de e-mails) e uma generosa vontade de ajudar os mais novos a avançarem nas suas carreiras, apoiando de modo entusiástico as suas iniciativas. Ou seja, no seu papel de diretor empenhado e visionário, o Professor Pinto Machado ensinou-me, com o seu exemplo diário, valores cruciais como os da honestidade intelectual, da educação médica e do humanismo cristão – aplicados à gestão de uma Faculdade de Medicina – que, desde então, vou tentando seguir de perto, mesmo sendo agnóstico.

 

Que conselho gostava de deixar aos seus estudantes no seu futuro profissional?

Eu não posso nem devo aconselhar nada que não tenha entretanto praticado, pois, parafraseando e voltando de novo a Camões, o saber deverá ser de experiência feito. É muito difícil aconselhar coisas que sejam os outros a praticar de que não tenha conhecimento por mim próprio e que, por isso mesmo, não sinta como credíveis.

A única coisa que vos aconselhava era tentarem ser os mais fiéis possível a vós próprios e à essência da vossa personalidade, tentando de algum modo seguir aquele velho mas muito sábio conselho de Sócrates (o filósofo grego e não o nosso ex-PM…) “Conhece-te a ti mesmo”. Vocês precisam, de facto, de perceber o melhor possível quais serão os vossos talentos, mas, de igual modo, quais serão as vossas limitações. Quais serão os vossos gostos, quais serão as vossas principais motivações e os vossos interesses, mesmo os inconfessáveis. Conhecerem-se o mais possível a vocês próprios e às vossas circunstâncias. E, depois, não terem medo de ir por caminhos pouco conhecidos ou pouco navegados.

“A única coisa que vos aconselhava era tentarem ser os mais fiéis possíveis a vós próprios e à essência da vossa personalidade.”

Aliás, eu aprendi logo em miúdo que os caminhos muito conhecidos e óbvios são aqueles para onde conflui todo o rebanho e estes caminhos tornam-se rapidamente demasiadamente lamacentos, porque todos neles vão caminhando, e as pessoas começam a acotovelar-se ou até mesmo a atropelar-se ou, no mínimo, a aborrecer-se umas com as outras. E o Mundo, esse continua a ser grande e não faltarão caminhos alternativos e, se calhar, bem mais promissores.

Ou seja, tentem seguir o vosso próprio caminho. O que é que é esse caminho próprio? É aquele que melhor se adapta a tudo aquilo que eu vos acabei de dizer, à vossa personalidade e às vossas circunstâncias, pessoais, familiares, profissionais, momentâneas ou permanentes. No início poderão até dizer-vos os vossos amigos, ou até os vossos pais: olha pareces um tolinho ao ires por aí.

“…tentem seguir o vosso próprio caminho…”

Eu posso-vos contar que o primeiro trabalho académico que fiz na Faculdade de Medicina foi no serviço de Farmacologia e Terapêutica, que naquele tempo era considerado o serviço dos príncipes ou dos eleitos, intelectual e socialmente, era o serviço da elite da Faculdade, do ponto de vista científico, académico e cultural, e o meu mentor na altura era um Senhor, que ainda hoje é vivo e muito ativo, e que é uma pessoa superiormente culta e capaz, o Professor Walter Osswald. Mas, uma vez, cheguei à beira dele e comuniquei-lhe que estava a pensar em concorrer a uma vaga de assistente estagiário que tinha sido aberta no serviço de Higiene e Medicina Social. Este era o segundo pior serviço da Faculdade, só havia um ainda pior, que foi, alguns anos depois, onde acabei por ir parar: o serviço de Biomatemática. Ou seja, naquele momento já algo longínquo de 1984, eu estava a dizer ao meu mentor e professor catedrático do melhor serviço da Faculdade de Medicina do Porto, que estava a pensar concorrer para o segundo pior serviço, de um total de 35. Portanto, eu comunicava-lhe que era minha intenção descer 34 degraus na escala de status quo da Faculdade.

Ora bom, ainda me lembro muito bem desse episódio. Ele fumava habitualmente cachimbo e, naquele momento, ele estava a fumá-lo, tranquila e cheirosamente, mas, por uns breves instantes, o seu cachimbo ficou assim como que parado, como se lhe pudesse vir a cair da sua mão ou da boca. Então ficou tudo assim um pouco no ar, o tabaco a arder, ainda mais lentamente, como se estivesse se o tempo, por um instante, e o seu próprio pensamento estivessem suspensos, talvez porque ele não acreditava ou, sobretudo, não compreendia o que eu lhe estava a dizer ou pior, pretendia fazer. Talvez por lhe parecer um completo absurdo, fruto de não ter pensado nada bem ou não estar nada lúcido. Finalmente, lá me perguntou porque é que eu estava a pensar em tal ideia. Basicamente aquilo que lhe disse, embora as palavras exatas já não as lembre bem, foi, num sentido geral:

“- Professor, aqui, no seu Serviço e Laboratório, eu consigo imaginar a carreira académica e profissional que irei ter no futuro. E consigo imaginar-me, com tempo e dedicação, a ir progredindo, e imaginar tudo o que meu percurso me poderá vir a trazer, e não será certamente pouco. Tanto do ponto de vista de prestígio académico como até de segurança financeira. Em contrapartida, no Laboratório de Higiene e Medicina Social, não consigo imaginar nada. Tudo nele me parece nebuloso, um grande ponto de interrogação ou até mesmo um grande risco! Tudo poderá vir a ocorrer-me: assim-assim, bem, muito bem ou até pessimamente. Ou seja, o caminho que aí irei percorrer fica em aberto. Certamente o risco será maior, mas também o será a aventura. E por isso estou tentado a percorrê-lo, pois a um maior desafio somos também obrigados a dar mais de nós, testando melhor assim tando os nossos limites como o nosso engenho.”

Portanto, com esta história que realmente vivenciei e aqui vos recordei, o que eu vos quero dizer é que há personalidades muito diferentes, ou, como diria a minha saudosa ama, “sempre há tolos para tudo”, mas, hoje e passados já mais de 35 anos, não me arrependo de ter escolhido fazer o percurso que então escolhi. Se, por qualquer circunstância, tivesse escolhido antes ter permanecido no caminho que já estava a percorrer, se calhar poderia até estar melhor, mas nunca se saberá porque nada se consegue verdadeiramente controlar nas nossas vidas. Resta-nos, pois, apenas tentar. E isso, por si só, é já todo um programa de vida!

Acabo com umas palavras, ou melhor, com um conselho que, não sendo meu – mas do Professor Sobrinho Simões –, muito me ajudou a fazer uma outra escolha profissional difícil: se deveria acabar o meu internato de Pediatria no S. João ou se deveria antes dedicar-me, na altura, à Biomatemática, na FMUP: 

“A decisão que tomares não é assim tão importante; importante é que venhas a maximizar a decisão que tomares.”

Ou seja, durante a nossa vida, todos acabamos por ter de tomar variadíssimas decisões. A começar desde logo pelos namorados/as que escolhemos ou aceitamos e a acabar em inúmeras outras decisões, de naturezas muito diversas, como as de natureza profissional. Mas o importante mesmo é, depois da decisão tomada, fazermos o melhor possível para que ela resulte bem. E se, mesmo assim, não vier a resultar, teremos, certamente, sempre outras hipóteses de virmos a escolher um outro caminho. Ou seja, de emendarmos a nossa primeira mão!

O que teremos sempre é de tentar ser resolutos, corajosos e estar bem connosco próprios. Porque, se o mundo é bastante grande, a vida pode ser demasiadamente curta, sobretudo para cumprirmos todos os nossos sonhos. Mas, mesmo assim sendo, a maioria das vezes ela é suficientemente longa para, durante pelo menos um bom bocado, sermos úteis e talvez até bastante felizes! Haja bons amigos e bons mestres!

 

Porto, 21 de maio de 2020

 

Entrevista realizada por Beatriz Sá, Rafaela Sá e Sara Monte.

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