À Conversa com António Ferreira (Parte 1)
Desde pequeno que queria ser médico, sonho que pôde concretizar com a sua formação em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Mas não se ficou por aqui e desempenhou funções como médico especialista em Medicina Interna, investigador na área da Insuficiência Cardíaca, Professor Doutorado em Medicina na mesma faculdade e autor do livro “Reforma do Sistema de Saúde – A minha visão”. Contando já com uma carreira médica e de investigação, António Ferreira decidiu abraçar com entusiasmo o desafio de ser presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de São João. O seu percurso conta com um extenso reportório de prémios arrecadados – desde a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde à Comenda da Ordem de Mérito atribuída pelo Presidente da República – e muitos artigos científicos publicados. Tivemos a oportunidade de estar à conversa com o Senhor deste espírito inovador, um exemplo para nos vermos e revermos, em busca do sucesso e realização pessoal.

 

O que é que o levou a escolher Medicina?

Desde a escola primária dizia que queria ser médico. Mas eu queria ser médico naquela perspetiva romântica de quem anda de mala na mão a ir de casa em casa e a tratar doentes que estão a morrer e a conseguir salvar vidas… Entretanto aconteceu a revolução do 25 de abril, acabei por me candidatar à Faculdade de Medicina do Porto e entrei! Portanto, tive sempre essa ideia fixa de ser médico, nunca desisti e foi assim que aconteceu!

 

“Quando acabarem o curso não serão médicos, serão “Semi-Médicos”…”

E como é que descreveria o curso de Medicina na sua altura?

Eu diria que provavelmente o curso de Medicina era tão mau como é hoje. Quando acabarem o curso não serão médicos, porque a Ordem dos Médicos e o Estado Português não reconhecem às faculdades de medicina a capacidade de formar médicos. Quando acabam o curso ficam “Semi-Médicos” e têm de fazer um ano de Formação geral, ao fim do qual passam a ser reconhecidos como médicos com capacidade de exercer a profissão. Portanto, isso é o maior atestado de incompetência das faculdades. A minha ideia de faculdade e de hospital universitário não é aquela que se verifica em nenhum hospital português e em nenhuma faculdade de medicina portuguesa.

 

“Um hospital universitário tem de ter uma administração conjunta que define a estratégia e a missão: assistencial, pedagógica e investigacional da instituição.”

O que é mudava no curso de Medicina?

Tudo. Não há nenhum hospital verdadeiramente universitário. Há faculdades que estão acopladas a hospitais ou hospitais que estão acopladas a faculdades. Um hospital universitário tem de ter uma administração conjunta que define as estratégias ou a estratégia e a missão: assistencial, pedagógica e investigacional da instituição.

Portanto, haveria a necessidade que esta instituição, não deixando de estar afiliada a uma universidade, fosse uma instituição à parte e, na minha visão, não faz nenhum sentido, haver carreira de professores da faculdade na área clínica, na parte clínica do curso. Não é preciso, não faz sentido, não é preciso haver carreira. O que é preciso é escolher, com ou sem doutoramento, os médicos mais competentes, quer do ponto de vista da sua experiência clínica, quer do ponto de vista pedagógico, quer em termos de investigação científica, seja clínica ou de translação. Em contrapartida, haveria uma Faculty, essa sim, com carreira, que teria haver com a chamada parte básica do curso e, aí sim tinha de haver professores, docentes, investigadores, que não teriam necessariamente, mas poderiam ter atividade assistencial e que constituíam a Faculty propriamente dita.

“Os estudantes teriam um horário de trabalho e durante esse tempo aprendiam de facto”

 E a parte do curso não precisava de ser como o disparate que é em todas a faculdades, dos blocos e das aulas práticas marcadas a uma hora exata. Os estudantes quando entravam na parte clínica do seu curso obrigatoriamente eram incluídos nas equipas médicas, de enfermagem, assistenciais. Um hospital como o HSJ tem capacidade para incluir nas suas equipas assistenciais todos os estudantes do ciclo clínico, quer a nível de internamento, quer a nível de consulta, hospital de dia etc. Isto significava que os estudantes teriam um horário de trabalho e durante esse tempo aprendiam de facto, porque durante esse tempo podiam acumular uma experiência de pelo menos três anos que não acumulam com o modelo de visitas pontuais a vários serviços. E depois de tarde, organizar-se-iam os seminários, através de uma metodologia de resolução de problemas que permitisse a identificação das necessidades de aprendizagem dos estudantes na planificação do processo de ensino/aprendizagem e na sua execução.

Assim quando acabassem o curso deveriam ser reconhecidos como profissionais médicos e não como apenas Semi-Médicos. O principal entrave neste modelo são os muitos interesses instalados. Para além disso, afetaria a dinâmica que temos atualmente nos cursos de medicina e na organização das próprias faculdades.

Porquê trocar a medicina pela gestão hospitalar?

Não foi nada pensado, nem planeado, não tenho nenhuma formação específica na área da gestão ou gestão de saúde. Em 2005 fizeram-me um desafio: integrar como diretor clínico o conselho de administração do HSJ. Aceitei esse desafio com uma vontade de fazer rutura, de mudar coisas, correndo o risco inerente a toda a mudança que é o de poder mudar para pior. Na altura, tinha já uma intuição que a única constante da gestão e das instituições é a mudança. As instituições paradas morrem.

Deste modo, liderei um processo de mudança convicto da possibilidade de ao fim de 2 ou 3 meses de iniciar esse processo poderia ser afastado, deixaria de ser membro do conselho de administração e voltaria a ser médico. Não aconteceu, mas teve para acontecer muitas vezes. E surpreendi-me por ter conseguido e ter ficado na governação do hospital desde meados de 2005 a 2016. Numa altura em que já estava há demasiado tempo na gestão, interessou ao hospital que eu saísse e que houvesse mudança. Tal como é preciso tempo para fazer mudança, também é preciso mudança para permitir que outros tenham tempo para a fazer. Assim, aquilo que aconteceu comigo não foi uma decisão pré-determinada para passar da clínica para a gestão hospitalar, mas foi um acaso resultante de uma circunstância que eu agarrei com toda a ingenuidade, crença, pujança e vontade de fazer.

Durante este período fui aprendendo a fazer aquilo que diz respeito à área da informação clínica, quer no que diz respeito à área da gestão, nas quais, obviamente, contei com um conjunto de pessoas que trabalham no hospital e na FMUP, profissionais do melhor que existe em Portugal e na Europa.

 

“Nomeia-se um chefe, mas a liderança conquista-se.”

Acha que com uma formação específica na área teria feito diferente?

Acho que não. A questão de mobilizar uma instituição, mesmo uma instituição com tantos milhares de colaboradores como é o HSJ, é essencialmente uma questão de liderança. A parte técnico-científica da gestão tinha muita gente no hospital que sabia, por isso o fundamental é conseguir que os colaboradores reconheçam a nossa liderança. Nomeia-se um chefe, mas a liderança conquista-se.

Não me preocupei com os aspetos técnico-científicos da gestão hospitalar, mas sim com a mobilização do hospital, com o envolvimento das pessoas que o constituíam. Uma organização da dimensão do HSJ tem uma cultura própria, revê-se num conjunto de valores e cria uma espécie de orgulho de pertença, tem uma missão comum. É o trabalhar esses valores e desenvolvê-los que leva a que as lideranças possam ter sucesso.

Portanto, nesse sentido, considero que não é absolutamente necessário ter uma formação teórica ou académica na área da gestão. Um médico que se queira dedicar à gestão, conhece o negócio, não no sentido do lucro, mas no sentido do processo de tratar doentes melhor do que qualquer economista ou outro administrador hospitalar.

“Sonhando conseguimos concretizar!”

Destas duas vertentes, em qual se sentiu mais realizado?

Exatamente da mesma maneira nas duas.

No tempo em que desenvolvi atividade clínica tive uma experiência entusiasmante quando integrei um grupo, em conjunto com o Prof. Paulo Bettencourt dedicado a uma área específica do conhecimento, a insuficiência cardíaca, que originou resultados de prestígio internacional, sonhando conseguimos concretizar. Com igual exaltação e entusiasmo do desafio permanente, foi também o período que passei na administração, em particular os anos iniciais em que o processo de mudança foi mais intenso, ainda que mais difícil e com mais resistências.

“Sermos ingénuos faz com que sejamos capazes de acreditar que é possível fazer coisas…”

Com o que sabe até agora se pudesse voltar atrás faria algo diferente no seu percurso?

De certeza que se voltasse atrás fazia muitas coisas diferentes.

No que diz respeito à gestão do Hospital, ainda bem que não posso voltar atrás, não que tenha feito tudo bem, com certeza que fiz e fizemos muitas coisas mal, mas há uma coisa que é fundamental, que é a ingenuidade. Quando se inicia uma tarefa com a dimensão daquela que nós iniciamos quando vamos para um conselho de administração de uma organização tão importante para a vida comum, como é o CHUSJ, o facto de sermos ingénuos faz com que sejamos capazes de acreditar que é possível fazer coisas que se depois de lá estarmos mais 10 ou 11 anos, voltássemos atrás nós hesitaríamos muito em decidir fazer, porque nesse tempo entranha-se uma determinada quantidade de cinismo que nos faz depois dizer «Mas eu vou meter-me nisto? E vou ter os problemas todos? E vou passar uma vida miserável por causa daquilo que quero fazer? Não vale a pena, não me vou chatear…» e o facto de não termos essa experiência e sermos ingénuos é um instrumento fantástico para podermos fazer coisas.

É exatamente por isso que os jovens são capazes de fazer coisas muito mais grandiosas do que aqueles que já são velhos como eu, que já têm 60 anos de vida e que já foram contaminados por uma quantidade relativamente grande de cinismo. E, portanto, essa pergunta verdadeiramente não tem resposta, porque se voltasse atrás o cinismo que, entretanto, adquiri impediria que fizesse muitas coisas. Embora eventualmente pudesse fazer algumas coisas melhor do que o que fizemos, porque já tínhamos passado por elas e podíamos eventualmente evitar erros que cometemos, mas se calhar também não fazíamos as coisas e se calhar não cometíamos os erros.

 

“Nós não temos gerações rascas, nós temos novas gerações com mentalidades diferentes e que ainda não estão contaminadas pelo cinismo.”

E essa dimensão da ingenuidade é fundamental para se conseguirem grandes coisas, o que não quero dizer com isto que eu tenha a perceção que nós fizemos grandes coisas no Hospital, mas o que fizemos, pouco ou muito, de positivo ou de negativo, só foi possível fazer porque éramos profundamente ingénuos. E é essa energia e essa capacidade e essa ingenuidade, que está longe de ser má, que a comunidade portuguesa tem de aproveitar dos seus jovens. É por isso que é importante que os jovens assumam responsabilidades. Nós não temos gerações rascas, nós temos novas gerações com mentalidades diferentes e que ainda não estão contaminadas pelo cinismo e que essas sim são capazes de fazer grandes coisas.

Claro que essas têm de interagir com quem tem mais de experiência e de cinismo e se calhar vão muitas vezes ouvir «isso não é possível». Uma das coisas que me recordo, era que sempre que eu queria fazer alguma coisa, daquelas que era necessário envolver para atingirmos os objetivos, ouvíamos muitas vezes « Era isso que se devia fazer, mas vai haver este problema, não vamos conseguir por causa disto, não vamos atingir por causa daquilo».

E quando se derrubava a primeira barreira logo aparecia outra, era preciso ir derrubando consecutivamente as várias barreiras que iam aparecendo, mas tínhamos a ingenuidade para fazer isso. É essa característica que os países, as comunidades e as gerações, têm de aproveitar, devem dedicar-se a ouvi-los e a deixá-los fazer. Sendo que isso deve ser feito na medida em que percebemos que há um desejo tão ingénuo como genuíno de servir o bem comum em vez de um desejo, se calhar também ingénuo, mas menos benigno, de servir os interesses próprios. E esse é o grande contributo de serviço ao bem que comum, que os jovens são capazes de dar para o bem da sociedade, da nação.  

“É importante que os jovens assumam responsabilidades.”

Entrevista realizada por Bernardo Torres, Margarida Fernando e Sofia Moutinho.

Vê aqui a Parte 2!