À Conversa com António Ferreira (Parte 2)

“Se não tivesse feito investigação, seguramente teria sido muito pior como médico”

Sabendo que é médico, investigador, professor e gestor. Onde se enquadra a investigação na vida de um médico?

Se não tivesse feito investigação, seguramente teria sido muito pior como médico e muito, mas muito pior, como gestor hospitalar. Porque é a mentalidade que me foi colocada durante a minha formação médica no hospital e na faculdade, a mentalidade relacionada com o método científico que sustenta uma prática e que estimula uma curiosidade que me permitiu, se calhar de uma maneira menos ortodoxa, mas se calhar também com alguns resultados, gerir o Hospital e ser melhor médico. Porque o verdadeiro médico, um bom médico, é aquele que é capaz de analisar, com a metodologia científica correta, a sua experiência e, em função disso, levantar questões e procurar as respostas.

 

Nenhum médico é verdadeiramente médico se não conseguir ensinar outros e aprender com os outros.”

Isto é fulcral, e além disto é fulcral para se ser médico essa capacidade pedagógica. A capacidade pedagógica é importante porque, e isto já vem do tempo de Hipócrates, nenhum médico é verdadeiramente médico se não conseguir ensinar outros e aprender com os outros. E essa aptidão pedagógica para ensinar e aprender, para ser modelo e para seguir modelos, sejam eles colegas ou futuros colegas de profissão, outros profissionais de saúde, estudantes de medicina, é fulcral para se ser bom médico. Além disso, como dizia Abel Salazar, se nós só soubermos de Medicina, nem de Medicina sabemos. Isto quer dizer que sem a responsabilidade de tentarmos aprender o mais que pudermos e se não formos capazes de também ter isso, ainda que pouco, de áreas que não tem propriamente a ver com a ciência médica, mas sim com as humanísticas, a arte e até com a política, dificilmente vamos ser capazes de ser médicos capazes de estabelecer uma relação com o doente e perceber a singularidade de cada um deles, o seu caráter absolutamente único e irrepetível, quer no que diz respeito aos seus aspetos físicos, psicológicos, sociais, espirituais ou religiosos. Essa singularidade obriga-nos a perceber que para sermos verdadeiramente médicos temos que ser capazes de respeitar os valores e as preferências de cada uma das pessoas que está à nossa frente, principalmente quando as pessoas são internadas para que o local onde cada doente está se aproxime, graças à nossa atitude e ao ambiente envolvente, o mais possível do seu lugar, que é a sua casa.

“Liderar não é mandar, não é ser autoritário, nem obrigar as pessoas fazer.”

Aproveitando a questão das relações humanas, o que é que é necessário para gerir uma equipa com 6000 pessoas como o HSJ?

A primeira coisa é perceber que mandar não serve para nada, o que serve é liderar. E liderar não é mandar, não é ser autoritário, nem obrigar as pessoas fazer. Liderar é desenvolver uma estratégia com um conjunto de objetivos, perceber muito bem a missão e a visão que temos, para depois entregar a um conjunto de pessoas as tarefas que elas próprias vão desenvolver e liderar para se atingirem os objetivos inicialmente propostos. Para além disso, uma das principais características para envolver e liderar pessoas é delegar. Ninguém sozinho consegue fazer tudo e se o quiser fazer e ser o único a tomar as decisões, sem delegar poderes e a capacidade de tomar decisões vai, obrigatoriamente, falhar.

Contudo, enquanto se delega, tem de se exigir a prestação de contas, que todos têm de fazer, a começar por quem lidera. Para terem uma ideia: nas pessoas que trabalhavam mais perto de mim, os membros do conselho de administração durante o tempo que eu presidi, não houve uma única vez a necessidade de procedermos a uma votação. Todas as decisões foram unânimes e por consenso, o que significa que há um trabalho prévio de permanente contacto entre todos os membros que, tendo funções delegadas, interagem, dialogam, resolvem discordâncias e chegam a consensos que depois nas reuniões essas decisões tomadas são rapidamente aprovadas sem necessidade de votar e de haver pessoas vencidas. Isso é importantíssimo para o sucesso de qualquer conselho que queira manter-se durante um tempo relativamente alargado na gestão de qualquer instituição.

Nós temos muitos colegas que querem ser gestores hospitalares, como é que acha que é a melhor maneira de eles atingirem o seu objetivo?

Como disse eu não fiz nenhuma formação, mas isso não quer dizer que eu seja modelo. Em primeiro lugar, faz sentido que as pessoas sigam, quer na fase pré ou pós-graduada, um processo que lhes permita adquirir os conhecimentos e as metodologias para poderem exercer a função e que procurem criar em si mesmo uma cultura de governação clínica. É necessário perceber e aceitar que os recursos são finitos e limitados, estejamos em crise ou sejamos os mais ricos do mundo.

A nossa capacidade de analisar os processos e perceber onde é que se pode fazer melhor com o mesmo custo e obtendo igual impacto social e na qualidade de vida do doente é o maior contributo que nós médicos podemos dar para garantir a sustentabilidade do sistema. Finalmente, se há um conselho é não façam disso carreira. Se o fizerem vão entrar num círculo vicioso, vão ser nomeados para gerir uma instituição, depois saem e são nomeados para gerir outra, podem ser do lado do partido que está no governo e facilmente arranjar um tacho ou estarem no lado do partido oposto e terem mais dificuldade. Se escolherem essa opção vão ficar sempre pelo mínimo, se a opção for «eu aceito esta tarefa, mas é para fazer mudanças inovadoras, que me diferenciam da mera gestão corrente que os outros fazem e que é habitual, correndo o risco de poder não estar aqui mais do que 1/2 meses ou de poder conseguir grandes coisas» então não hesitem e optem por esta carreira enquanto têm a tal ingenuidade que vos permite acreditar. Se deixarem passar muito tempo entram num carreirismo, são gestores ou administradores hospitalares e não vão, seguramente, deixar impacto, uma marca, promover a mudança e servir a comunidade.

“Portugal vai acabar por perder o SNS!”

Como se encontrava o SNS e o que mudou?

Primeiro ponto, eu acho que o SNS na altura não estava muito diferente do que está agora ou do que estava antes. Neste momento, estou convencido de que, mantendo-se a atitude política que tem sido adotada ao longo dos anos, independentemente das forças partidárias que sustentam o governo, Portugal vai perder o SNS, um modelo de prestação de cuidados de saúde baseado no conceito europeu de estado social e isso é uma ameaça terrível e muito grave. Se não decidirmos instituir as reformas verdadeiramente necessárias, não mudarmos a metodologia e, acima de tudo, não tivermos a coragem de dizer a verdade a todos aqueles que têm a possibilidade de, pelo voto, fazer escolhas, assumindo a responsabilidade dessas escolhas com base na verdade, o nosso SNS, que na minha opinião, e os dados são objetivos, está falido há alguns anos, vive em agonia pré-morte, vai desaparecer.

Portanto, quando falamos em reforma, precisamos de fazer reforma a sério. Penso que se não formos capazes de encontrar consensos para instituirmos as reformas necessárias o sistema vai implodir e cair e vamos perder este bem maior que é o sistema de prestação de cuidados de saúde baseado no conceito de gestão social europeu.

 

“Aguentem a ingenuidade de que é possível ser-se médico”

O que diria a um estudante de medicina que está a terminar a sua formação?

Antes de mais, diria que o admiro pela sua coragem, porque está a fazer um curso numa época em que ser médico é extraordinariamente difícil e não por causa desta questão da covid-19, mas devido às condições da prática da medicina e do exercício da profissão. E é extraordinariamente difícil por vários motivos como a proletarização da profissão.

Nós médicos deixamos que a nossa dimensão de verdadeiros servidores, orientados por valores deontológicos, que deveriam ser defendidos e regulados pela nossa ordem, para passarmos a ser uns proletários e esse modelo não se adapta à prestação, ao exercício da profissão médica. Passamos a ser uns proletários remunerados à ordem com sindicatos a defender os nossos direitos sindicais e direitos à greve e esse todo o tipo de coisas. E isso é altamente deletério para os médicos, mas de ainda mais para os doentes.

Portanto são tempos muito difíceis e a coragem de querer ser estudante de medicina, para ser depois professor ou médico, essa coragem é algo que merece a minha admiração! Se tenho alguma experiência para dar conselhos é: aguentem a ingenuidade de que é possível ser-se médico no respeito pelos valores deontológicos que regem a profissão pela arte do exercício da medicina e pela valorização dos conhecimentos científicos que se são indispensáveis ao exercício de medicina, aguentem ao máximo essa ingenuidade de acreditar que isso é possível e serem capazes de exercer a medicina sustentável por esse conjunto de valores.

 

Entrevista realizada por Bernardo Torres, Margarida Fernando e Sofia Moutinho.

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