À Conversa com Miguel Guimarães (Parte 1)
 

Indeciso entre Jornalismo e Medicina e com o fascínio de ajudar pessoas, iniciou em 1980 o seu percurso formativo na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde exerceu entre outras funções associativas, o cargo de Vice-Presidente da Associação de Estudantes da FMUP. Concluiu também, em 1997, o seu internato em Urologia no Hospital de São João, no Porto.

Miguel Guimarães foi um membro fundador da Associação Nacional de Jovens Médicos e, após ter passado por diversos cargos, tal como presidente do conselho regional do Norte da Ordem dos Médicos, foi eleito como bastonário da Ordem dos Médicos para o mandato de 2017-2019 e reeleito para o seu segundo mandato, no triénio 2020-2022.

Para além da sua carreira médica, é autor ou coautor de mais de 100 trabalhos publicados e é investigador em mais de 25 estudos, nas áreas da hiperplasia benigna da próstata, bexiga hiperativa, disfunção erétil e carcinoma da próstata.

 

O que é que o levou a escolher Medicina?

Aquilo que me levou a querer estudar medicina foi o que eu julgava ser importante para o resto da minha vida. Algo que fiz em todo o meu percurso e me faz sentir bem: ajudar as pessoas. Hoje ajudo os médicos, ontem ajudei outras pessoas, e todos os dias continuo a ajudar os doentes.  Foi, sem dúvida, o motivo principal para escolher esta profissão.

Na altura, como eu até estava bastante bem classificado, ou seja, entrava em praticamente qualquer coisa, as alternativas em cima da mesa eram a Medicina e o Jornalismo.

 

“Hoje ajudo os médicos, ontem ajudei outras pessoas, e todos os dias continuo a ajudar os doentes.”

Começando por nos falar do seu tempo de estudante da FMUP, consegue-nos dizer em que projetos esteve envolvido?

Durante o meu trajeto como estudante, estive ligado à associação de estudantes desde muito cedo, a partir do meu 2º ano de faculdade. Passei pela AE, pela assembleia de representantes, cheguei a fazer parte como representante dos estudantes no conselho diretivo, quando o conselho diretivo da faculdade tinha apresentação de estudantes sem direito a voto.

Consigo destacar algumas coisas fraturantes que, nós como associação de estudantes, acabámos por fazer, como por exemplo, a criação do departamento de publicações, entre elas a revista Arquimed, tendo constituído uma obra importante, porque permitiu à AE ter autonomia financeira, tornando-se assim uma revista importante, quer dentro do Hospital São João, quer a nível nacional.

Lembro-me também do apoio que, como associação de estudantes, demos à guerra, que a ordem dos médicos na altura teve de fazer junto da ex-Ministra da Saúde Leonor Beleza, por causa do internato geral. Na altura, a Ministra da Saúde tinha um projeto que não chegou a avançar, em que os médicos da formação geral deixavam de ter um vencimento e queria introduzir a dedicação exclusiva obrigatória para todos os médicos. Quando se abordou esta matéria no parlamento, conseguimos reunir uma centena de estudantes de medicina e encher as galerias do parlamento para fazer alguma pressão e que acabou por funcionar e, por isso, neste sentido tivemos um papel importantíssimo! Para além da participação em reuniões, fazendo manifestações, fazendo ações de campanha, por exemplo, na cidade do Porto, estarmos a falar com a população e explicar a nossa posição, mediamos a TA aos doentes, assim como dávamos um folheto a explicar o que queríamos para o país e porque não concordávamos com as propostas da Ministra da Saúde. Foi um momento que decididamente marcou a minha passagem pela associação de estudantes.

Finalmente, estive também ligado à associação de jovens médicos que, posteriormente, veio dar origem à Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM). Houve muitos momentos especiais, sobretudo na ajuda que, como AE, demos aos nossos estudantes de medicina, sendo esse o principal papel de Associação de Estudantes de Medicina.

 

Quais as razões que motivaram a sua candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos?

Essa pergunta é mais difícil. Podia ser respondida da mesma forma que a anterior, mas eu acho que vai um bocado mais além.

Como membro da direção da Ordem-norte, tive a incumbência do que era a comunicação da mesma, desenvolvi várias coisas que hoje ainda estão presentes como, por exemplo, a revista NorteMédico, tendo sido eu o responsável pela sua fundação. O percurso que fui fazendo levou-me a candidatar a Presidente do Conselho Regional do Norte, pois na altura achei que a Ordem precisava de uma dinâmica completamente diferente e julgo que acabei por transmitir essa dinâmica, não só à secção do Norte, mas também a todo o país.

Como Presidente da Secção Norte, cumpri a tradição de exercer o cargo por dois mandatos e sair após a sua conclusão. Nessa altura tive imensos colegas, não só do Norte, mas também de todo o país, que me motivaram a candidatar a bastonário e, depois de uma reflexão profunda, achei que fazia sentido este desafio. Fazia sentido por dois motivos: primeiro, porque achei que podia fazer mais alguma coisa pelos médicos e pelos doentes, sobretudo aquilo que é qualidade do que nós fazemos, nomeadamente a qualidade da medicina, e o segundo desafio, não menos importante, desmistificar o facto de nunca um candidato do Norte ter sido eleito bastonário.

Reparem que neste momento estamos a atravessar uma crise muito difícil, provavelmente a maior crise que me lembro desde que existo, e quem está a liderar esta crise é o Centro Hospitalar Universitário de São João, na medida em que os fluxogramas utilizados pela DGS nesta crise são baseados no que se faz no São João. Portanto, esta liderança que o Norte sempre teve, e que seguramente vai continuar a ter em várias áreas da medicina, era uma liderança que não se concretizava naquilo que era o representante máximo dos médicos. Deste modo, este desafio ia dar mais alguma coisa à saúde, ao país e, portanto, foram essas duas razões que me motivaram no fundo a candidatar-me a bastonário.

Relativamente às suas funções como bastonário da Ordem dos Médicos, pode-nos explicar como funciona um dia normal e em que consistem as suas funções diárias?

Um dia normal é acordar a pensar nas coisas que tenho de fazer na Ordem dos Médicos, quando me vou deitar, estou a pensar novamente na Ordem. Isto é, o cargo de bastonário é um cargo que absorve o tempo todo. Ser bastonário da Ordem dos Médicos não é uma coisa agradável, porque o nível de responsabilidade é imenso.

Os presidentes dos Conselhos Regionais do Norte, Centro ou Sul podem não exercer a sua função, mas eu, como bastonário, tenho de a exercer, caso contrário a Ordem para. A Ordem dos Médicos funciona, porque o bastonário tem de funcionar, se o bastonário parar, a Ordem para. E, portanto, como a responsabilidade é muito grande, este é um desafio que não é fácil e que a pessoa tem de perceber que, quando abraça este cargo, está a prescindir de muita coisa da sua vida pessoal, sendo esta amplamente prejudicada. É indiscutível que não é possível desempenhar o papel de bastonário de acordo com o que diz o próprio estatuto e, simultaneamente, conseguir fazer tudo que se conseguia fazer antes. Apesar de tudo, determinei que, à quinta feira de manhã estou no Hospital São João a fazer consulta e, portanto, não há reuniões com ministros nem com ninguém.

E depois é o tempo todo dedicado a isto, porque as solicitações são muitas, porque a Ordem dos Médicos é chamada a dar opiniões sobre praticamente a tudo, dá pareceres a tudo; a Ordem dos Médicos é diferente das outras ordens da saúde, porque as outras ordens da saúde estão muito concentradas apenas nos seus profissionais e a sua área de intervenção é muito específica. A Ordem dos Médicos, para além de ter este objetivo, é chamada a intervir na saúde de uma forma geral e, por isso, nós temos de intervir na saúde.

 

Qual considera ser o papel da Ordem dos Médicos na nossa sociedade?

Teoricamente, o papel da Ordem dos Médicos na sociedade deveria ser aquele que está definido no estatuto da Ordem, que temos de cumprir na íntegra.

O problema da Ordem é que esta extravasa aquilo que são as suas funções estatutárias. E eu não estou a pensar em funções sindicais, ainda que muitas vezes seja impelida pelos médicos a ter posições de âmbito sindical. Algo que a Ordem está proibida de exercer. Mas o que a nós já não podemos fugir é o apelo da sociedade civil. 

São desafios aos quais a Ordem não pode dizer que não, mesmo que estes desafios ultrapassem ou vão para lá daquilo que é o estatuto da OM. Portanto, quando a Ordem tem uma intervenção como, por exemplo, nesta crise da COVID-19, primeiro tem que estar junto daquilo que são as decisões do governo e isso inclui não estar a criticar permanentemente o governo como a gente faz e tem feito em circunstâncias em que realmente o temos de fazer, na medida que temos que garantir a qualidade da medicina, garantir que os direitos dos médicos são preservados, temos que garantir que os doentes têm acesso a bons cuidados de saúde, etc. Por isso, este é o momento de estarmos todos unidos e de as divergências serem colocadas de parte. E mesmo assim, em circunstâncias mais extremas, nós temos de ter uma intervenção. Nessa perspetiva, quando está em causa a saúde e a vida das pessoas, a Ordem dos Médicos nunca deve ficar calada, mas sim intervir.

Como classifica o estado atual do SNS?

Já antes de toda esta epidemia da Covid, o SNS estava muito fragilizado, por um motivo principal: o desinvestimento de que tem sido alvo.

Se formos analisar os dados relativos ao investimento no serviço público de saúde ao longo dos últimos anos e o número de potenciais doentes, bem como a idade da população, vão verificar que temos uma população que, embora não tenha crescido em número, subiu muito em doença. Porquê? Porque é uma população muito envelhecida. Ou seja, a necessidade de acesso aos serviços de saúde aumentou nos últimos 20 anos, por aumento das comorbidades que estão associadas a uma maior esperança de vida. Com isto implica um maior esforço do sistema, que não foi sendo acompanhado pelo reforço da verba nos orçamentos de estado, na parcela da saúde. Só para terem noção, há 10 anos, o valor que era alocado à saúde era maior do que é hoje.

E o que significa isto? Significa, por um lado, que apesar de ter havido um esforço mais recente nos últimos anos de tentar contratar mais profissionais para o SNS, a verdade é que o número de médicos que existem no SNS continua a ser muito baixo e não é substancialmente mais elevado do que há 10 anos. Quando o Ministro das Finanças fala desta matéria, nunca aborda o número de médicos contratados com horário reduzido, cerca de 1700 médicos, a fazer 20 horas ou menos, comparando com o horário completo.

O governo contabiliza os médicos da formação geral, que aumentaram de forma exponencial, só para terem noção no meu tempo éramos cerca de 500 e hoje são perto de 2000. Os Internos de Formação Geral são médicos sem autonomia, são médicos que ainda estão numa fase intermédia de aprendizagem, que ainda estão a ter contacto com a clínica, e, portanto, estes valores que, às vezes se apresentam para dizer que o SNS tem mais médicos, não são realísticos.

“Concluindo, pode haver mais médicos, contudo ainda não suficientes. Na prática, temos uma força de trabalho menor daquela que tínhamos, mas mesmo assim tratamos ainda mais doentes.”

E aqui vem o segundo grande problema: o desrespeito que os responsáveis políticos têm tido pelos profissionais de saúde, em especial, pelos médicos e enfermeiros, que são sempre os principais visados nestas matérias. Este desrespeito desmotiva as pessoas…. É evidente que as pessoas não têm uma motivação acrescida para continuarem a trabalhar num serviço em que são pessimamente mal pagas.

Se considerarmos os países da Europa ocidental, excluindo os países da Europa de Leste que ainda estão numa fase de crescimento, Portugal é o país em que os médicos são pior remunerados no setor público, mas mesmo assim os médicos aceitam trabalhar muitas vezes sem as condições adequadas, aceitam fazer um esforço enorme para manter o SNS de pé, os médicos sabem que o SNS é absolutamente essencial para os cidadãos, nomeadamente para combater aquilo que são as grandes desigualdades, sejam elas territoriais, sejam desigualdades sociais que existem na nossa sociedade. Se depois disto tudo, ainda por cima, os médicos são maltratados publicamente pelo poder político, é evidente que isto é um problema grave. Portanto estes dois problemas: o desinvestimento e a forma como temos sido tratados têm levado a que o SNS tenha ficado cada vez mais frágil e nós, se neste momento não revertermos esta situação, o SNS vai servir cada vez menos pessoas.

 

“A democracia tem 2 grandes conquistas: uma é a liberdade e a outra é o SNS.”

 Reparem que neste momento o SNS não serve mais do que 57% dos portugueses, não tem capacidade para servir mais. Os portugueses cada vez têm mais seguros privados de saúde e cada vez mais recorrem ao setor privado para terem consultas. Portanto, neste momento, o SNS está numa situação de fragilidade que precisa de mudar rapidamente que é para nós podermos ter, de facto, um SNS universal de acesso equitativo para todos os portugueses, dentro daquilo que é possível, porque isto é o sinal mais positivo da nossa democracia. Como já ouviram dizer, a democracia tem 2 grandes conquistas: uma é a liberdade e a outra é o SNS.

Entrevista realizada por Diogo Ferreira, Francisco TeixeiraMargarida Pereira.

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