À Conversa com Miguel Guimarães (Parte 2)

Qual é a sua opinião sobre as condições atuais de trabalho no SNS em comparação com as condições oferecidas pelo privado ou mesmo com as encontradas noutros países europeus?

O SNS tem uma coisa extraordinária, o motivo pelo qual uma grande parte dos médicos gostam de trabalhar no serviço público, que é o facto de trabalharmos em equipa. O serviço público é onde acontece a formação, a formação dos especialistas, mas também a formação contínua, porque o serviço funciona como um todo. Quando eu vou para o bloco ou para a consulta com o meu interno, eu estou a aprender com ele. A relação no serviço público de saúde é uma relação win-win para toda a gente: para os especialistas e para os internos, em que todos aprendemos uns com os outros.

Não são só os internos que aprendem, nós também estamos a aprender, até porque, normalmente, são os internos que acabam por estudar mais, ler mais, e estão sempre a levantar dúvidas relativamente a algumas práticas. E isto não existe no setor privado, nem existe na maior parte dos outros países estrangeiros. Ou seja, na maior parte dos países estrangeiros pode-se trabalhar em equipa, mas esta característica genuinamente portuguesa de nós nos ajudarmos uns aos outros e transmitirmos os conhecimentos uns aos outros, não existe propriamente em todos os países do mundo. Nos outros sítios de topo a nível mundial, temos de nos esforçar mais para aprender, não temos as coisas tão abertas como aqui em Portugal, e este é o aspeto que eu acho que é mais positivo. Quem vai trabalhar para fora, como por exemplo para o Reino Unido ganha 3 a 4 vezes mais, para Espanha 2 a 3 vezes mais, e para outros países chega a ganhar 6 ou 7 vezes mais. Eles lá respeitam muito o conhecimento e a responsabilidade dos médicos e, portanto, eles pagam muito bem, porque sabem que os médicos são muito importantes e têm de se sentir confortáveis e têm de estar completamente focados nas suas tarefas, porque têm a noção que a vida das pessoas depende disso também.

Se não fosse esta união, as pessoas saiam, porque o resto é tudo pior. Ganha-se muito pior do que no setor privado, isto já para não comparar com o salário no estrangeiro. Por isso é que eu tenho defendido que deve voltar a existir a possibilidade das pessoas poderem escolher trabalhar em dedicação exclusiva, porque isso melhorava a remuneração de quem quisesse ficar no SNS e era positivo para os médicos. Melhorava a remuneração, em praticamente 70%, portanto quase que duplicava, e aliás se a pessoa fizer horas extra na urgência pode mesmo duplicar a remuneração. Por outro lado, afastava também aquele estigma, de trabalhar nos dois setores e haver alguma confusão com isto.

Nós trabalhamos no setor privado porque temos necessidade de trabalhar no setor privado. Quem trabalha no privado ganha, em média, pelo menos o dobro de quem trabalha no SNS, dependendo da especialidade, há especialidades que podem vir a ganhar 10 vezes mais. No SNS, devido ao desinvestimento que já falamos, que foi um desinvestimento global, muitos equipamentos estão desatualizados. Tudo isto, e sobretudo para quem é novo como vocês, e que acaba a especialidade e quer fazer as coisas que andou a aprender e que se fazem nos outros países, com aquelas tecnologias, e percebem que em muitos hospitais não têm esses equipamentos nem as condições de espaço físico acabam por não optar pelo SNS. O estado português tem de ser concorrencial, tem de valorizar aquilo que é o trabalho dos médicos, tem de valorizar aquilo que é a enorme responsabilidade que os médicos têm na sociedade civil. Não há ninguém que tenha mais responsabilidade que nós, porque nós lidamos com a vida das pessoas. O que os cidadãos esperam de nós é que consigamos tratar deles, consigamos fazer diagnósticos corretos e os melhores tratamentos possíveis. Portanto atualmente o cidadão é mais exigente, e bem!

 

“Não há ninguém que tenha mais responsabilidade que nós, porque nós lidamos com a vida das pessoas.”

O número de médicos indiferenciados é cada vez maior. Até que ponto o nosso país e o atual SNS garantem a continuação da nossa formação?

Como sabem, não é só em Portugal que os médicos não estão a ter acesso à especialidade. Em Espanha, no ano passado, havia cerca de 17000 candidatos para pouco mais do que 7000 vagas. Em Itália é muito pior, eram 40000 candidatos para 12000 vagas. Nos países cujo sistema de acesso à especialidade é semelhante ao nosso, que são poucos, as coisas obviamente não estão bem. E não estão bem porquê? Porque as pessoas deslocam-se.

A União Europeia tem muitas coisas positivas, mas também tem muitas coisas negativas. E uma das coisas negativas, neste caso, é e liberdade de circulação. E no caso da medicina, a única barreira é a barreira linguística. Se as vagas que a OM, juntamente com o ministério da saúde, tem aberto fossem apenas para os médicos formados no nosso país, não havia nenhum médico fora da especialidade, a não ser que não tivesse nota para entrar na especialidade que quer e não entrasse em nenhuma porque não queria, mas não é assim. A OM fez um grande esforço para tentar que existissem o máximo das capacidades formativas. Neste mandato tivemos os 3 maiores mapas de vagas de sempre. Eu tenho pressionado os colégios, no sentido de não diminuir a qualidade, que essa tem de se manter. É a essência da nossa profissão, mas para tentar que sejam abertas o máximo das vagas nos internatos e tenho de tirar o meu chapéu aos colégios porque têm feito um trabalho como nunca acho que foi feito, têm feito um trabalho notável. Portanto nós estamos no limite das capacidades, isto é, eu neste momento não sei se para este ano vamos ter o número de vagas que tivemos o ano passado, porque tenho o feedback das pessoas que estão a ser formadas, e temos acompanhado isto rigorosamente.

O segundo aspeto, que acho que é o mais importante, é que o estado Português, à semelhança do que fazem os outros estados europeus, pode e deve criar mecanismos para proteger os médicos formados em Portugal. Porque o dever do estado com os médicos que entram nos cursos de medicina em Portugal, é diferente do dever do estado com os médicos, que podem ser portugueses ou não, que fazem o curso de medicina fora do país…

“Um médico sem especialidade pratica uma medicina mais pobre e com menos qualidade e não temos muita volta a dar a isso.”

O governo poderia usar alguns mecanismos para garantir que os médicos formados em Portugal continuem a fazer a formação pós-graduada e, depois, as vagas sobrantes seriam para quem viesse de fora. Também não parece que esta solução vá ser conseguida brevemente, até porque as AE de medicina têm tido uma posição que não ajuda nada. As AE’s de medicina não podem querer ter vagas para todos os estudantes de medicina que se formam em Portugal e, ao mesmo tempo, ter vagas para todos os estudantes de medicina portugueses ou estrangeiros, sendo que o número de estrangeiros é cada vez maior, que se formam fora do país. Assim, as associações de estudantes têm aqui dois pesos a que não atribuem medidas diferentes. É impossível defender a capacidade formativa para todos os estudantes formados em Portugal e, ao mesmo tempo, defender a capacidade formativa para todos os recém-formados que decidem continuar a formação em Portugal.

Assim, enquanto não houver uma atitude diferente, dificilmente esta situação de resolve.

 

Na sua opinião, como se encontra o estado atual do ensino de medicina, em comparação à altura em que estudou? O que mudaria?

Neste momento as faculdades de medicina têm claramente mais estudantes do que aqueles que devia ter. Eu não tenho dúvidas sobre isto e tenho-o dito a todos os diretores das escolas médicas e acho que pelo menos uma parte deles concorda.

Um aspeto ainda mais relevante que a formação teórica e a própria capacidade de ensino é a parte prática que se torna muito complicada. Na parte prática, ter tutores para uma dezena ou para duas dezenas de estudantes é um número que claramente ultrapassa aquilo que são as recomendações internacionais que existem nesta matéria. Nessa perspetiva, sem querer dizer se o ensino da medicina está melhor ou pior, porque isso seria fazer um juízo de valor errado da minha parte, sobre algo que eu não conheço na prática, eu acho que o número de estudantes de medicina, pelo menos nas escolas médicas tradicionais ou até mesmo em todas, acaba por prejudicar aquilo que é o ensino prático.

Teoricamente, um estudante de medicina quando acaba o curso devia ser médico imediatamente e ter logo autonomia para o exercício da medicina, ou seja, não teria de necessariamente passar por um período de formação geral se a faculdade já tivesse incluído isto que se faz na formação geral, no próprio curso de medicina. Isto é um problema que eu julgo que vai ser ultrapassado com a nova PNA, ao ser uma prova na qual se vai valorizar o raciocínio clínico e a experiência que se vai ter na abordagem de um doente, quer seja diagnóstica, terapêutica, etc. Isto leva a que as escolas médicas, para ficarem bem e para prepararem os próprios alunos para esta nova prova, vão ter de adaptar o ensino da medicina na sua própria escola, ou seja, vão ter de ter um ensino também mais prático com um contacto mais próximo dos doentes.

 

O que diria a um estudante de medicina que está a concluir a sua formação médica?

Eu dar-lhe-ia os parabéns por estar a concluir a sua formação e desejava as melhores felicidades, mas sobretudo que no desempenho da sua profissão de médico tenha sempre presente três valores essenciais:

Um que está relacionado com a atualização de conhecimentos, ou seja, ser um bom médico bem preparado medicamente e cientificamente.

O segundo, que tenha sempre presente na profissão as regras éticas e deontológicas que existem.  Isto significa ter um grande sentido humanista no exercício da profissão e preservar a essência da relação médico doente, sempre.

Por último, diria que se mantenha sempre presente na sua cabeça, enquanto médico, a importância de ser solidário em todas as circunstâncias e especialmente naquelas em que as pessoas mais precisam de nós.

Um verdadeiro médico tem de ser bem preparado técnica e cientificamente, tem de ter uma boa relação médico-doente e ter um espírito humanista grande e tem ainda de saber ser solidário.

E é isto que eu desejo a um estudante de medicina, porque, muitas vezes, a nossa especialidade não depende de sermos melhores ou piores, mas sim de um momento de sorte quando fazemos um exame.

 

Entrevista realizada por Diogo Ferreira, Francisco TeixeiraMargarida Pereira.

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