COVID-19: a tua aprendizagem está infetada?

As faculdades de Medicina de todo o país foram pioneiras no encerramento das atividades letivas presenciais. Uma atitude proativa, que ressalta a importância de minimizar o impacto que a COVID-19 viesse a ter, quer na população académica (estudantes, docentes, investigadores, funcionários), quer nos doentes, já que estaríamos a falar de um número significativo de estudantes a contactar com os mesmos.

É incontestável o impacto que a pandemia está a ter na vida da sociedade. Pode dizer-se, com segurança, que o momento por que estamos a passar será um marco histórico internacionalmente e um ponto de viragem na economia, saúde e normas sociais. Em concordância, a adaptação imposta nas instituições de ensino superior terá também consequências no futuro da pedagogia.

Em relação ao ensino de Medicina, o diagnóstico já está feito: a Educação Médica em Portugal está entre os afetados por COVID-19 e, apesar dos esforços, ainda não há um tratamento cientificamente comprovado que permita a cura. Talvez a cura milagrosa nunca chegue a existir, mas todos os esforços estão a ser feitos para controlar os sintomas e prevenir uma disfunção sistémica das Escolas Médicas de Norte a Sul do país.

Neste momento está em tratamento domiciliário, com desafios diários para enfrentar. Tiveram de ser procuradas alternativas e inovar. Mas sabemos que mudanças de dieta e no estilo de vida nunca são fáceis!

Convidamos a Professora Doutora Isaura Tavares, docente da FMUP e Presidente do Conselho Pedagógico da Faculdade, a partilhar connosco um pouco  da sua perspetiva sobre o contexto atual:

O ensino à distância no contexto da Medicina apresenta desafios acrescidos e específicos a docentes, estudantes e funcionários. Desde logo porque o método impede as dinâmicas e as realidades de uma consulta ou de uma cirurgia vivenciadas em tempo real. Exclui também o contacto humano que governa a relação médico-doente, e que os nossos estudantes têm a possibilidade de testemunhar no CHUSJ e nos outros hospitais afiliados, quando a Medicina é o que deve ser.

O processo ensino/aprendizagem no 2º semestre deste ano letivo terá que ser reinventado e tal só será possível com solidariedade, compreensão e superação. SOLIDARIEDADE entre docentes, estudantes e funcionários na partilha de experiências pedagógicas e humanas. E se todos merecem solidariedade em qualquer circunstância, os docentes que se encontram na frente da batalha devem ser alvo de um reconhecimento muito especial. COMPREENSÃO porque haverá dificuldades na disponibilização de conteúdos online a devido tempo e porque, pese embora o excelente trabalho feito pela “FMUP ONLINE” na passagem para um novo paradigma de ensino, certamente será necessário ir fazendo ajustes à medida que o processo avança. E, finalmente, SUPERAÇÃO por parte de todos. Como sempre deveria ter acontecido, mas agora de um modo especial, o processo de ensino-aprendizagem dependerá em larga escala da capacidade de auto-trabalho, disciplina e espírito de entreajuda dos estudantes, nomeadamente fazendo trabalho prévio de familiarização com as matérias utilizando fontes credíveis, e usando os momentos online para discussões verdadeiramente profícuas.

Professora Isaura Tavares

Desde o término das aulas presenciais, anunciado pelo Conselho de Escolas Médicas a 9 de março, que toda a comunidade de pessoal docente e não docente, médico e não médico se uniu para dar resposta à infeção e assegurar que os estudantes continuavam a sua formação. O curso de Medicina mostrou estar à altura do desafio e reinventou-se.

O ensino da Medicina nas escolas médicas dos países atingidos terá que se ajustar rapidamente às condições impostas pela necessidade de isolamento social e pelo envolvimento de muitos docentes no combate direto à Pandemia. No nosso caso, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), fomos a primeira escola a enfrentar este desafio porque o Centro Hospitalar Universitário de S. João (CHUSJ) foi o primeiro hospital de referência da zona Norte, o que implicou a suspensão das aulas presenciais, pelos riscos inerentes à presença dos estudantes junto dos profissionais de saúde e dos doentes. Muito cedo se percebeu na FMUP que só o ensino à distância poderia assegurar alguma continuidade que permitisse formar os jovens profissionais de saúde que o país tanto precisa.

Professora Isaura Tavares

Apesar dos esforços para minimizar os danos, a correta recuperação necessita de acompanhamento atento. Toda a componente prática, de contacto clínico, entrou em falência e foi imperioso desenvolver vias alternativas para salvar este órgão.

Enquanto Escolas Médicas, iremos enfrentar inúmeros desafios a médio e longo prazo. A falta de contacto com doentes e a impossibilidade de praticar manobras clínicas trazem-nos desafios que terão de ser colmatados. Diversas estratégias terão de ser colocadas em prática de modo a munir os futuros médicos com aquilo que de essencial se mostra na sua formação.

Os especialistas estão confiantes na resiliência de um curso que, apesar da idade, tem um vigor sempre jovem, numa procura constante por dar resposta aos desafios e se manter atualizado, acompanhando as mudanças da Ciência, da Tecnologia e da Sociedade ao longo dos tempos.

Todos estamos a acompanhar a forma como as Unidades Curriculares se estão a transformar a um ritmo exponencial.

Na FMUP, por exemplo, ainda antes do contexto pandémico atual, o Departamento de Fisiologia e Cirurgia Cardiotorácica foi premiado na quarta edição do concurso “Projetos de Inovação Pedagógica” 2020, pela criação de material de estudo em formato virtual das componentes teóricas de Fisiologia, reconhecendo a mais-valia de um estudo autónomo através do acesso a material de qualidade, abrindo espaço de discussão e de análise de casos clínicos nas aulas teórico-práticas.

Convidamos, por isso, o Professor Doutor Adelino Leite Moreira, docente da FMUP, membro do Conselho de Representantes e do Conselho Científico da Faculdade e diretor do Departamento de Cirurgia e Fisiologia, a partilhar a sua experiência nesta transição, enquanto docente-regente na FMUP:

Penso que toda a comunidade académica da FMUP, incluindo o Departamento de Cirurgia e Fisiologia, se viu tomada de surpresa pelos desafios que o distanciamento social impôs no nosso modelo atual de ensino.

Felizmente, no caso da Fisiologia, já dispúnhamos de um portfólio de conteúdo online, incluindo o formato vídeo, que permitiu uma transição para formato de ensino remoto de forma quase imediata. As aulas práticas e o contacto com os docentes nesta área disciplinar também foram facilitadas por uma adoção relativamente rápida de ferramentas de videoconferência por estes e pelos alunos. Esta mudança acabou por expôr quer algumas mais valias das novas tecnologias na docência, quer algumas redundâncias no sistema que seguíamos e já inspirou alguns docentes a repensar os moldes do nosso ensino pré-clinico na era pós-pandémica.

Já no que toca às Unidades Curriculares do ciclo clínico, nomeadamente a de Doenças Cardiovasculares da qual sou regente, foi necessário proceder à preparação intensiva de muito material de novo, que permitiu retomar rapidamente, e apenas com ligeiro atraso inevitável em relação ao que estava agendado, a atividade letiva. Mesmo as aulas práticas, apesar da incontornável impossibilidade do contacto com o doente, foram retomadas recorrendo à discussão de casos clínicos, embora algumas ferramentas, como as de simulação, fazendo ou não uso de tecnologias de realidade virtual ou aumentada, possam no futuro vir a ser adoptadas, mesmo fora da atual contingência, como um complemento de ensino muito apetecível.

Professor Adelino Leite Moreira

Todo o problema é, à luz do audaz observador, uma oportunidade. E esta está a permitir-nos, de forma acelerada, testar e desenvolver novos modelos pedagógicos de ensino anytime/ anywhere.

É agora momento de desenvolver as ferramentas que já possuímos, de as aperfeiçoar e colocar em prática. Acima de tudo, inovar as modalidades pedagógicas que têm vindo a ser utilizadas há largos anos e de sermos pioneiros no panorama nacional e, quem sabe, internacional, na utilização dos avanços tecnológicos de que dispomos.

As aulas virtuais, disponibilizadas em diferido, enriquecem, a cada dia que passa, a cada vídeo-aula carregada no moodle, uma biblioteca de conhecimento arquivado, disponível a qualquer hora, a qualquer aluno. As videoconferências são palco para aulas práticas com participação estudantil ativa, que pode ser tão viva quanto na antiga versão presencial. Outras, concebidas especificamente para a discussão de casos clínicos, apelam à discussão e raciocínio clínico, que sabemos tão crucial na nossa metamorfose médica.

As plataformas de doentes simulados são uma enfermaria rica em patologias diversificadas que gostaríamos de ter nas aulas práticas. Flexíveis, com uma ampla variedade e abrangência de fisiopatologias, escolhas terapêuticas e prognósticos, fornecendo a possibilidade de recorrer a meios complementares de diagnóstico, muitas vezes indisponíveis para aprendizagem em contexto presencial. Multiplicam-se as plataformas que têm tudo para ser o gold standard de aplicação e consolidação de conhecimentos.

O Problem-Based-Learning, PBL, é, adicionalmente, um modelo de aprendizagem adotado nas universidades de renome internacional que caracteriza a aprendizagem centrada no aluno. Os “tutores” apresentam casos de forma resumida e os estudantes, em grupo, analisam aquilo que lhes é dado, estimulando o seu raciocínio clínico através da realização de exame físico, do pedido de meios complementares de diagnóstico, recurso a fármacos, tudo de forma simulada. Esta estratégia, que começa a ser implementada a nível nacional, permitirá à maioria das Unidades Curriculares afastar-se dos métodos de ensino expositivos tradicionais para um enfoque personalizado na aprendizagem de cada estudante.

Se é certo que, por estes tempos, não podemos aprender presencialmente, também é verdade que o certo a fazer é adaptar os conteúdos a lecionar às ferramentas de que dispomos, e ainda ganhar vantagem com isso.

Os estudantes estão a ser desafiados a não cair na ociosidade e manterem-se ativos, a acompanhar as aulas e a responsabilizar-se pela sua formação, como, aliás, sempre devem primar por fazer, à luz do que é o prestigioso ensino universitário. A aprendizagem centrada no estudante, ativa e com base no raciocínio por parte do mesmo, permite uma internalização e maturação dos conceitos de qualidade superior.

Mas qual será o prognóstico? Como estará a saúde das Escolas Médicas a longo-prazo?

Há já uma certeza: a adaptação que o contexto atual está a exigir às instituições de ensino superior, concretamente, às escolas médicas, terá consequências irreversíveis no futuro da pedagogia e da educação médica. A mudança tão pouco deve ser vista como algo negativo, já que se acompanha de dinamismo, modernidade, avanço tecnológico e uma ímpar sinergia entre os docentes e estudantes. Acreditamos que há potencial para um fortalecimento do sistema de ensino, com anticorpos contra novas epidemias e a adoção de hábitos mais saudáveis, com vantagens para alunos e docentes.

O tempo da aula teórica em que o aluno é o recetáculo de conhecimento está ultrapassado, mas nem sempre foi fácil assumir-se essa realidade enquanto instituição. Por outro lado, os resultados pedagógicos das intervenções a realizar ao longo do que resta deste ano letivo terão que ser analisados no futuro e poderão ser a força motriz para novos modelos de ensino/aprendizagem na FMUP. Como em qualquer momento de crise, será certamente possível aproveitar os ensinamentos que a aplicação de modelos alternativos de ensino/aprendizagem e avaliação propiciarão.

Professora Isaura Tavares

Com todo o espólio de informação audiovisual que está a ser desenvolvido, será que o ensino teórico sairá dos anfiteatros, ano após ano cada vez menos preenchidos, passando para explicações disponibilizadas on-line?

E se o tempo ocupado no horário pelas aulas teóricas abrir espaço para mais horas passadas em discussão de casos clínicos, aulas práticas em contexto de simulação ou hospitalar?

E se o nosso doente, o Ensino Médico, aceitar finalmente que os tempos mudaram e que as ferramentas tecnológicas não são um inimigo do ensino tradicional, mas um complemento?

O momento atual não deve deixar de ser visto como uma oportunidade para fazer uma análise crítica e repensar o sistema de ensino e as ferramentas onde valerá a pena investir no futuro.

As circunstâncias que vivemos poderão ter então um papel crucial ao forçar-nos a experimentar e aclimatar a novas modalidades de ensino, as quais, iremos muito provavelmente perceber serem demasiado valiosas para as deixar para trás e voltar exatamente ao que éramos. Devemos premiar tudo o que permita um ensino orientado à aquisição de competências fundamentais sólidas, promova o gosto em aprender Medicina e seja incutido com valorização profissional e o respeito pelo doente.

Professor Adelino Leite Moreira

Acima de tudo, a verdade é que não se sabe ainda quando será possível os estudantes voltarem ao ambiente hospitalar, não se sabe se os próximos invernos trarão novos surtos, não se sabe quão profundas terão de ser as mudanças na Educação Médica depois da COVID-19 ter obrigado a uma reestruturação de toda a prestação de cuidados de saúde.

Enquanto estudantes de Medicina dizemos, com especial brilho nos olhos, “São 6 anos!”. E, se o são, acrescidos de outros tantos de formação específica, passando ainda pela formação geral, então facilmente percecionamos a reduzida percentagem de tempo formativo que esta pandemia condiciona na globalidade do nosso percurso.

Principalmente em momentos de incerteza como o que vivemos nos dias de hoje, todas as “próteses” podem ser úteis e os modelos de ensino alternativos, recorrendo a contextos simulados e ferramentas para treino do raciocínio clínico, almejam ter um papel cada vez maior na Educação Médica.

Com os pés na terra e os olhos no futuro, virá o tempo de melhorar, explorar, desenvolver e afinar o que tem que ser afinado dos recursos tecnológicos que agora utilizamos, como profilaxia para futuras re-infeções.

A Educação Médica na era pós-COVID ambiciona-se próspera e, decerto, nunca mais será a mesma.

Daniel Gaspar

Helena Brito

Margarida Albuquerque