ANGOLA
Amor, voluntariado e Angola.
Estas são três palavras que repito sem cessar umas centenas de vezes por dia. Portanto, estás avisado(a): prepara a domperidona para esta viagem pela minha mente e pelo meu coração (ah, coração também repito!). E agora vou fazer algo extremamente confortável: tentar expor-me de maneira a que a minha vida seja interessante para ti. Vamos lá então!
O meu nome é Inês, existo há 23 anos, nasci e fui criada em Ovar, uma terra que transborda nostalgia, maresia e descoberta, e estou atualmente no 6º ano do MIMED da FMUP. Desde que me lembro sempre tive dois sonhos: entrar em medicina e ir em missão. Feliz ou infelizmente, não fazia ideia do que é que qualquer uma dessas palavras significava até as experimentar, até ter as memórias do primeiro ano do curso (e do Netter) todas desfocadas pelas lágrimas. Mas o sentimento subjacente a esses sonhos era o mesmo: ser amor para o próximo, libertar-me na entrega desmedida ao outro.
E as pessoas que tomaram essa decisão – e que metem o extra no ordinário – pertencem a um grupo chamado Voluntariado Passionista (VP), sediado em Santa Maria da Feira que pertence à ONGD Rosto Solidário e aos Missionários Passionistas. Em 2015, quando as lágrimas do primeiro ano do curso secaram, decidi ingressar no VP por saber que faziam voluntariado internacional, o que mais tarde percebi ser uma razão tonta, pois o que me fez permanecer não foi esse pormenor. Entre atividades de angariação de fundos, formação e voluntariado nacional e internacional, destaco a ida à Casa dos Pobres de Coimbra, um lar de idosos. Conquistou o meu coração desde o primeiro momento. Já alguma vez perdeste a noção do tempo enquanto fazes coisas que nem aprecias muito normalmente? É isto que acontece lá, porque podes entregar-te totalmente ao que estás a fazer e, sobretudo, a quem és. Entras em histórias dignas de um filme, lutas com o marido que acalma a memória apagada da esposa demente, emocionas-te com o rancho folclórico e aprendes que o amor não morre, aliás, que o amor é tudo.
Calumbo. O pedaço de céu na terra que conquistou todo o meu ser e que me ensinou a arte de ter um coração inteligente. Foi nessa comuna (concelho) a 1h de Luanda que decorreu a minha primeira missão em Angola. No local onde os Missionários Passionistas construíram a biblioteca “Imbondeiro do Saber” que juntos inaugurámos, eles, eu, a minha parceira Rita e os dedicados voluntários locais Damião, Flora, Yema e Maria. Bem, honestamente, as primeiras duas semanas foram difíceis, encarar e lidar com uma realidade tão diferente da minha e das minhas expectativas foi desafiante, bem como ter de gerir a logística a que uma biblioteca obriga. Porém, sempre me senti motivada e em paz pois o foco não era individual, trabalhávamos todos, de diferentes formas e em situações distintas, para o mesmo objetivo. E isto dá-nos uma força incalculável porque a missão é maior que nós. Além disso, Angola e as suas gentes ensinaram-me a largar o relógio e a perder-me no tempo, ensinaram-me que para ser é preciso “desprender-me” e ensinaram-me a virtude de ter um coração inteligente, isto é, agir com compaixão e entrega mas de forma ponderada e sustentável. Voltar para Portugal foi uma das coisas mais difíceis que fiz na vida.
Mas isso não me chegava. Não me sentia em casa. Trocava as minhas férias todas, trocava uma volta ao mundo por um regresso a Angola. Então, levantei-me do sofá.
Queria experimentar os cuidados de saúde e queria ver se gostava realmente de Angola ou se era só de Calumbo… Por isso, juntamente com a minha irmã Catarina, estudante de optometria, rumámos ao Centro Médico de Viana em 2018. Nem consigo dizer-te o quanto aprendi no mês de julho que lá passámos. Aprendi, sobretudo, a dizer não sei. Aprendi a falar de saúde e a ouvir. Aprendi que me orgulho de não fazer em Angola aquilo que não estou habilitada a fazer, por mais que quisessem que o fizesse. Aprendi que todo o ser humano tem o mesmo valor e que ajudar uma criança a perder o medo dos profissionais de saúde dá uma pica do caraças. A Dra. Rita, uma obstetra angolana, foi uma das melhores e mais pacientes professoras que já tive. Não lhe disse, mas foi por ela que escrevi a minha tese sobre cuidados de saúde maternos em locais com recursos limitados, é por ela que tenho fé no sistema de saúde angolano. Mas, claro, conheci uma realidade que me chocou mais que o que esperava, contactei com doenças que nada mais sabia além do nome, convivi com a clínica do “chapa cinco” de quem luta para dar o melhor da sua formação e senti o valor que a saúde tem.
Nesse mesmo ano, ainda aproveitámos o mês de agosto para regressar a Calumbo, mas desta feita para nos emergirmos na prisão do Kakila, dado que o projeto do ano anterior já rolava sozinho. Uma prisão em Angola assusta um pouco, não? Pois, mas é só no primeiro dia. De seguida, passas a movimentar-te com confiança e graciosidade. Aí, entre nós, a Diana e a Vera construímos um pólo da biblioteca na prisão, fizemos a triagem das necessidades ao nível de refração ocular e demos aulas de inglês. Foi das experiências mais inspiradores que tive, tornou-me mais humilde e aumentou a minha esperança no mundo, na misericórdia e na redenção. Não fiques a pensar que sou totó e uma otimista incurável. Se partilhasses uma gargalhada com o C. enquanto ele arrumava o livro “O Último Dia de um Condenado” ou se testemunhasses o carinho e a proteção do olhar desafiador mas arrependido do A., também acreditarias, com cautela claro, mas terias fé, como eu.
E voltei, mais uma vez. Não consegui manter-me quieta. Em 2019 voltaríamos a Angola, desta vez não para os cuidados de saúde primários, onde a nossa formação não nos habilitava a ajudar muito, mas para uma missão nova no Waku Kungo (uma comuna a 7h a sudeste de Luanda).
Claro que não acredito que mudei alguma coisa no mundo, mas mudei-me. Descobri que todos nós temos que deixar de olhar com superioridade, que é essencial que não nos deixemos levar por estereótipos ou pelo que achamos que os outros querem ou são, pois cada um de nós é um universo irrepetível e basta dispormo-nos a ouvir-nos para tudo se transformar. Só depois de o sabermos e de nos conhecermos a nós próprios é que podemos deixar um trabalho bem feito.
E aqui estamos, em ano de PNA não haverá Angola no verão, mas há uma Inês que continua cheia de questões, que continua a procurar-se, que foi encontrando algumas coisas pelo caminho mas que se empolga por continuar a colecionar perguntas, mais do que a procurar as respostas. Não vivas com certezas, vive com amor. Vive a adaptar-te às perguntas, tendo a certeza de que nada mais és do que amor: “desprende-te”.