Mariana Maia

TIMOR

O meu nome é Mariana Maia, do 5º ano, sou do Porto e, no verão antes de entrar para a FMUP (2015), fiz um mês de voluntariado em Timor-Leste, integrando um grupo de outros colegas e colaboradores do Colégio do Rosário, onde estudei. Vou contar-vos aquela que foi uma das experiências mais enriquecedoras da minha vida e que vou, sem dúvida, repetir quando for médica.

Os meses que antecederam a missão de voluntariado foram muito importantes. Foram meses em que trabalhámos para unir um grupo que se tornou uma autêntica equipa; preparámos aquilo em íamos fazer, reunimos e enviámos material com antecedência e mentalizámo-nos que, apesar desta preparação, íamos para o outro lado do mundo enfrentar imprevistos.

 

Fomos divididos previamente em dois grupos e o meu foi para Ossu. Chegados a Dili, seguimos para Baucau e depois para Ossu numa carrinha pick-up. Demorámos dias a chegar àquela que ia ser a nossa casa durante um mês. Em Ossu, ficámos a dormir num “orfanato” que tinha crianças órfãs e outras cujos pais não tinham condições para as criar em casa. Ali, tinham acesso à escola, acompanhamento escolar, muita companhia e espaço para serem crianças.

O trabalho que desenvolvemos em Ossu tinha duas vertentes: o ensino e um “querido, mudei a casa” que, ao longo do mês, me foi obrigando a ter paciência, ao mesmo tempo que me orgulhava cada vez mais.

Propusemo-nos a renovar o máximo de espaço que conseguíssemos de uma escola que não tinha condições nenhumas. Tínhamos enviado contentores com material de construção, tintas, tudo o que fôssemos precisar. Tudo isto foi angariado/oferecido e a nossa missão era colocar em prática, no terreno, e deixar a aprendizagem necessária para que o nosso trabalho fosse continuado. As nossas manhãs e início de tarde eram passadas neste espaço. Das seis salas de aula, renovámos duas. Aprendi a distinguir paredes que precisavam de reforço daquelas em que não mexemos, misturar tintas, fazer cimento, lixar, pintar paredes. Nos primeiros dias, confesso, este trabalho desanimou-me um bocado e, em conversas de grupo, todos partilhávamos esta ansiedade. Dedicarmo-nos a uma obra não nos estava a trazer aquilo que imaginávamos: recompensa imediata, um dar e receber instantâneo, a sensação de missão a ser cumprida. E, neste momento, tivemos que mudar o nosso mindset. Tive que valorizar mais aquilo que estava a fazer. Valorizar o dia-a-dia e valorizar algo que, para mim, no meu mundo, era óbvio e acessível a todos: a educação e condições para tal. Foi nesta reflexão que percebi o trabalhão que estávamos a fazer. Não, de dia para dia, eu não ia perceber o impacto do meu esforço. Mas, no final, tendo-me dedicado diariamente àquela tarefa, ia causar um impacto notório e duradouro.  Por outro lado, passei a focar-me mais no que se passava à minha volta. Os miúdos brincavam connosco, queriam ajudar, queriam ver, queriam sentir-nos cuidadores. Os professores iam espreitar e conversar connosco, desabafar. Apercebi-me que havia um menino que ia todos os dias procurar-me, para me dar um sorriso de 5 segundos ou mostrar-me o brinquedo que tinha construído naquele dia, dependendo do tempo que tivesse. Nas pausas, sentava-me a aprender tétum; nunca lavei pincéis sozinha; parámos tudo para os ouvir cantar e orar; ensinei português;  mostrei o mapa do mundo; tirei fotografias a rostos lindos de morrer. Ficava fisicamente exausta, com a cabeça motivada e coração a disparar emoções.
À tarde, distribuíamo-nos. Uns ficavam na obra, outros iam para “casa” ajudar as crianças nos estudos e dar aulas aos professores, auxiliares, irmãs (freiras) que acompanhavam os estudantes. Nestes momentos, surgia mais um choque, um confronto com uma realidade tão distinta da nossa. Quando partimos numa Missão assim, dificilmente imaginamos que vamos ensinar o básico dos básicos.  Vamos preparados para transmitir algum conhecimento mas, quando damos por ela, não transmitimos nem metade porque tivemos de começar do zero. Tivemos de começar por ensinar coisas que não nos lembramos de nos serem ensinadas porque são um instinto para nós, aprendemos há muito, estão enraizadas na nossa sociedade. E, portanto, um mês não é quase nada. Um mês é o que os faz perceber que há mais por aí e nos dá vontade de continuar.

Ao final do dia, éramos convidados especiais para a Missa. Tão especiais que cantámos em tétum e ouvimos cânticos portugueses. Recebíamos sorrisos envergonhados e sentíamos o nervosismo por nos receberem num momento tão significativo. Apaixonei-me pelo povo timorense, que é de uma humildade desmedida.

 

Este mês em Timor foi uma descoberta que recomendo a todos. É ainda mais importante que, enquanto médicos, sejamos conscientes que partilhamos o planeta Terra com realidades que carecem da nossa intervenção para que possam evoluir em necessidades fundamentais. Educação, higiene, alimentação, bem-estar, gestão de recursos. Aquilo que podemos dar é, acreditem em mim, muito pequeno. Do nosso ponto de vista, claro. Vi lugares tão “parados no tempo” que o mínimo que ensinássemos seria um passo enorme. Mas é preciso disponibilidade daqueles a quem pretendemos dar, tempo, e muita coragem para ir. Depois de se ir a primeira vez e voltar, as malas estão feitas para um dia regressar.

 

Finalmente, percebi que aquele cliché do dar e receber existe, sim. E eu sei que dei muito. Mas saí de lá com a sensação de só ter recebido. Recebi, aprendi e cresci tanto. Vi, muitas noites, o céu estrelado do hemisfério sul, sentada na parte de trás de uma pick-up. Desconfortável, claro, mas a desejar estar ali mesmo. Numa dessas noites, vimos uma estrela cadente. Habituei-me a tomar banho com baldes de água fria e a não perguntar que comida estava a ser servida. Só aceitar. Ganhei a amizade de olhares desconfiados que passavam a abraços apertados. Visitei uma comunidade tão isolada (Bubur Laran) que pensei que podia aparecer na National Geographic. Fiz crianças felizes a jogar futebol e nem sei jogar. Fui “convidada” para ser irmã da Noy e tive que lhe explicar que já tinha família em Portugal. Orgulhei-me muito daqueles que fizeram missão comigo. Aprendi a contar em tétum e nunca mais me esqueci. Tive muitos lagartos no meu quarto. Mergulhei em praias desertas. Ouvi o desejo de vir um dia a Portugal. Fiz parte de uma equipa brilhante. Assisti a muita criatividade para construir brinquedos. Ofereci quase toda a roupa que levei. Trouxe pulseiras, bilhetinhos, camisolas, pedras, tais (“cachecóis” com muito significado na cultura deles) que me ofereceram. E, dias antes da nossa partida, a Professora Domingas contou-nos um provérbio que a fazia lembrar de nós: “Quem parte leva saudades, quem fica saudades tem.” E foi assim que regressei: com saudades.